Algumas vezes, por
conta do dever de ofício, visito maternidades da cidade de Manaus,
nas quais eventualmente comporto-me como espectador, ou seja, observo
tudo ao meu redor sem interagir diretamente. A princípio poderia ser
este um comportamento muito monótono, desde que tudo funcionasse
como deveria funcionar, o que não é o caso. Infelizmente coleciono
algumas angústias silenciosas de gente que se acostumou a
resignar-se, porque tem suas vozes caladas, muitas vezes pela força
de sua timidez, outras pela intimidação de uma citação do artigo
331 do Código Penal, que agora virou moda estar fixado em
repartições públicas.
Certa vez, enquanto
aguardava na triagem de um maternidade aqui em Manaus, vi uma mãe
procurar o serviço social buscando auxílio para que o seu filho de
vinte dias, que chorava muito toda vez que urinava. A mãe foi pedir
ajuda ao hospital no qual pariu seu bebê, mas a assistente social,
muito diligente, disse a mãe que procurasse um Caic, cuja sigla
carrega a pretensão de ser Centro de Atenção Integral à Criança.
A mãe disse que já tinha ido ao Caic, e que a informação dada é
que um bebê até trinta dias de nascido deveria retornar a
maternidade na qual nasceu em caso de problemas de saúde. A
assistente social, confrontada (ou seria desacatada porque alguém
ousou duvidar de sua informação?) mandou a mãe voltar ao Caic e
buscar um encaminhamento médico, porque somente com o papel na mão
que a mãe teria seu filho atendido. Aqui vale a pena ressaltar que
existe um jogo de empurra, pois estávamos em uma maternidade do
Estado e os Caics são do município. Nem governo nem prefeitura
parecem desejar acolher aquela mãe desesperada com o seu filho no
colo, porque nenhum deles parece desejar assumir o “ônus” de
proporcionar um serviço digno a população. Eu poderia ter tomado
as dores daquela mãe e intervir, mas poderia ser eu o acusado de
desacatar um funcionário público ao opor-me a que uma mãe e um
criança fossem tacitamente empurradas porta à fora, sujeitas a
caminharem sob um sol à pino de meio-dia, talvez enfrentando um
ônibus calorento e insalubre. Aquela Maria, com o seu “cristo”
no colo, sem nenhum José ao lado, baixou a cabeça e disse que
retornaria ao Caic. Na verdade eu não tinha comigo a informação de
quem tinha razão, a mãe ou a funcionária pública. Assim impotente
permaneci calado.
Na mesma semana, dava
aula de teorias da administração para acadêmicos do curso de
enfermagem, e resolvi ilustrar uma das disfunções da burocracia com
este caso, precisamente o que Charles Perrow classificou como
“excesso de regras”. Como alguns de meus alunos já trabalham na
área da saúde, fiquei sabendo que não era necessário o
encaminhamento médico, ou seja, descobri que a mãe tinha razão.
Disse-lhes que e em outra oportunidade, em idêntica situação de
trabalho, estava ao lado de uma mãe com o seu filho no colo que
ciosamente segurava uma pasta com vários documentos do bebê, dentre
eles uma cartilha que é distribuída as mães com várias
informações (importantes digo), mas que não tratava dos seus
direitos e os da criança no que se refere ao atendimento de saúde.
Prontamente ouvi deles que essas informações poderiam ser
repassadas durante o pré-natal, isto em um mundo utópico muito
distante da realidade brasileira, pois há poucos dias recebemos uma
mãe que lutava pelo direito a ser atendida por um médico em seu
pré-natal, já que se aproximava o dia de dar a luz e somente fora
atendida por enfermeiros. Isto sem mencionar que foi com muito custo
conseguiu marcar o primeiro pré-natal, devido as agendas lotadas dos
Caics. Só conseguiu um exame de ultrassom para atestar a saúde e a
idade do feto porque obteve a ajuda da Associação Viva a Vida
(www.avav.org.br) que pagou
pelo procedimento.
Neste verdadeiro
inferno da saúde, que nem Dante Alighieri teve imaginação
suficiente para descrever, é que vejo alguns candidatos a prefeito
prometerem que irão resolver (mas não dizem como). Porém, por mais
paradoxal que possa parecer, é quase certo que o campeão de votos
para vereador em Manaus seja um “cantador de toada de boi”, que é
um ritmo local que tem repercussão nacional por meio do festival
folclórico de Parintins. Esse artista local já é vereador pelo
PDT-AM, cujo dono local do partido é o atual prefeito Amazonino
Mendes, que quando governador entregou um hospital na periferia de
Manaus que leva o nome da mãe dele. No entanto, já que estamos
falando de saúde pública, Amazonino quando viu de perto a face da
morte, foi-se tratar no Hospital Sírio Libanês em São Paulo, dando
o exemplo de como sobreviver ao inferno criado por ele e seus
sucessores. Mas, o que tem haver o cantador de toada de boi com essa
história toda?
Todo bom boiadeiro
conhece a estória do “boi de piranha”, cujo enredo descreve que
para atravessar uma boiada por um rio infestado de piranhas, o peão
sangra uma rés e a atira ao rio. Enquanto as piranhas se arvoram em
comer o animal sacrificado, no outro extremo do rio uma manada
inteira passa. Este é o método político de escolher candidatos
"tiriricas", ou seja, personalidades conhecidas, mas com
pouco conteúdo, ou plenamente manipuláveis por aqueles que o
inventam como "político". Portanto, ao votar em massa no
“artista legal”, oportunamente vai passar com ele uma boiada que
sabemos é vinculada a um partido, ou a uma coligação, pois o
sistema eleitoral é assim: Uma votação em massa no “boi de
piranha”, faz passar uma boiada. Infelizmente muita gente
desconhece como funciona a eleição por coeficiente eleitoral, no
qual votos recebidos por um são transferidos para terceiros.
Retornando ao assunto
inicial (falta qualidade na saúde), vejo que existe ausência de
inteligência para fiscalizar e propor ações públicas que possam
colocar o cidadão como guardião do sistema. Tudo isto se consegue
com informação, como por exemplo: palestras e distribuição de uma
cartilha com os direitos da parturiente e da criança, para que ambas
não sejam chutadas das maternidades, usando o mesmo método que
obriga todo estabelecimento comercial a ter o Código de Defesa do
Consumidor. No entanto, a única informação que vejo proliferar
para as mães nas maternidades é que levantar a voz é crime, e que
é bom ficarem caladas para não serem enquadradas no artigo 331 do
Código Penal.
Perdemos tempo votando
no “artista legal” que se presta a ser boi de piranha, assim como
qualquer outro que se sobressaia não com propostas, mas por meio da
venda de sua própria imagem. Assim, não ficaria surpreso se aquela
mãe da maternidade manifestasse que iria votar no artista, pois
faltaria a ela a conexão de sua realidade com os meandros eleitorais
que a fazem sofrer o seu calvário.
Esta é a nossa realidade!
João Lago
Administrador,
professor e ativista social.
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