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segunda-feira, 25 de julho de 2016

O Sagrado e o Profano



Nos anos 30 do Século XX, o compositor alemão Carl Orff misturou o latim de versos eróticos medievais com os acordes e cânticos de música erudita, cujo idioma até então era exclusivo para as composições de música sacra. Logicamente essa mistura, aliada ao talento musical do autor, produziu uma das mais conhecidas peças clássicas do século passado, popularizada entre os jovens dos anos 90 por Michael Jackson que a utilizou durante a abertura de shows de sua turnê mundial intitulada Dangerous. Trata-se de Carmina Burana que um desavisado seria capaz de confundir a composição profana de Carl Orff com uma música de repertório cristão, tipicamente para ser tocada em igrejas. Acho importante definir o conceito “profano” aqui atribuído como simplesmente a utilização de simbolismos sacros para produção de obras de caráter secular (saeculāris), que na interpretação do latim eclesiástico significaria aquilo que é do mundo, ou dos homens.

Nesses ecos de festas juninas que ainda ressoam em Julho, estive prestigiando um arraial em uma comunidade na zona rural de um município vizinho de Manaus, no qual grupos de dança se apresentavam. Um deles, formados por crianças e adolescentes, estava caracterizado com uma indumentária que lembrava as veste de Michael Jackson (inclusive com o microfone labial tipo headset) e dançavam ao ritmo pop com letras repletas de mensagens religiosas. Estava ao meu lado uma amiga, que é psicóloga e atua na região, a quem sussurrei ao pé de ouvido: Se não estivessem dançando essas músicas, provavelmente estariam dançando um funk. O líder do grupo de dança ao final convidava que pais interessados que inscrevessem seus filhos nos ensaios e enfatizava o cunho cristão como proposta ideológica.

Quando adolescente estudei em colégio salesiano e sempre tive os portões abertos da escola para prática esportiva, artes e em particular o teatro. Em uma dessas oportunidades, durante a montagem da peça Otelo de Shakespeare, pela pesquisa musical necessária para compor a trilha sonora, tive contato profundo com a música clássica erudita, inclusive Carl Orff. Era um tempo que os mundos estavam bem divididos e não se misturavam o sagrado e o profano. Era um tempo que o catolicismo era a religião majoritária e não se discutia a evasão de católicos para correntes neopentencostais. Eram ainda tempos de ditadura militar. Hoje tudo mudou, e vemos grupos cristãos (incluindo católicos) surgirem com movimentos jovens que propõem “carnaval de cristo”, “hip-hop do senhor”, “rock evangélico” etc. O jovem passou a ser disputado por essas doutrinas cristãs emergentes e se antes todos os ritmos do mundo secular que os atraiam eram profanos, agora podem ser adaptados para uma temática “santa”.

Minha análise antropológica rasa desse fenômeno é que o jovem é atraído para viver experiências que os coloquem em contato com o mundo, como um ser que se evade da forma protetora de crisálida com uma avidez voraz pelo conhecimento (qualquer que seja). Porém, os valores que são construídos no seio familiar serão aqueles que inicialmente servirão de julgamento sobre aquilo que lhe convém ou aquilo que lhe seja moralmente proibido. A depender do quanto esses valores estejam internalizados no indivíduo, os conflitos íntimos de personalidade podem frear condutas sociais e eventualmente ser motivo de sofrimento silencioso que podem produzir um adulto frustrado, recalcado, revoltado e infeliz. Esse efeito colateral é atribuído por minorias da sociedade aos valores cristãos e que hoje tanto alimenta o discurso para promoção de um mundo mais secularizado. Ao mesmo tempo, os movimentos cristãos reagem e buscam introduzir na cultura secular mensagens de ideologia religiosa.

Desde que a família, por sua degradação, deixa de ser um ambiente primordial de formação de valores, os meios de comunicação (a televisão principalmente) e a escola se transformam em um canal de disseminação de ideologias que tem como alvo os jovens. Alguns pais podem ter a possibilidade de colocar seus filhos em uma escola confessional ou instalar em sua casa um canal pago de TV com conteúdo restrito, porém é justamente na maioria servida pela TV aberta e cliente do ensino público que vem a reação contra a doutrinação política e da ideologia de gênero. O expoente da vez dessa reação é movimento Escola Sem Partido, idealizado pelo advogado Miguel Nagib que inspirou o Projeto de Lei nº 867/2015, de autoria do deputado Izalci (PSDB/DF) que prega que os professores devem se comportar em sala de aula com uma “neutralidade ideológica”. Aqueles que apoiam o projeto defendem que a formação moral da criança não deve ser protagonizada pelo professor, mas restrita ao âmbito familiar, enquanto aqueles que são contra defendem a importância do ambiente escolar para ensinar valores como diversidade, igualdade e inclusão, principalmente da livre sexualidade. É justamente nesse ponto da sexualidade que reside o combate feroz entre conservadores e os ideólogos de esquerda.

Observo uma crescente polarização que não admite mais nenhum discurso morno, ou se está muito quente ou extremamente frio. O mundo secular sempre existiu e por muito tempo o acesso pleno a ele somente era permitido àqueles que entravam na idade adulta. Lembro-me de um disco de vinil de composições francesas que vi certa vez em um sebo que trazia uma tarja de “proibido para menores de dezoito anos” porque trazia a música Je t’aime, moi non plus (1976) na qual homem e mulher sussurram e gemem enquanto cantam. Hoje, qualquer “funkezinho” dos mais inocentes é muito mais moralmente perturbador que essa composição de Serge Gainsbourg. Eram tempos em que se acreditava que se devia preservar a inocência das crianças e essa censura imposta durante a ditadura militar produziu uma intelectualidade que em nome da liberdade de expressão tornou-se refratária a qualquer espécie de controle de acesso a conteúdo.

Não pretendo nesta minha reflexão apresentar uma solução de conciliação entre o sagrado e o profano, mas observo que os movimentos que misturam cultura secular com mensagens religiosas estão perdendo o foco, ou cedendo em suas convicções ideológicas justamente para uma minoria articulada e influente na sociedade. Não acredito que a solução seja o “funk de jeová”, ou qualquer outra coisa que possa soar como heresia para atrair jovens, mas simplesmente ensiná-los a reconhecer e a julgar o que pode ser melhor para si, respeitando o seu corpo, sua integridade moral, respeito às leis, respeito ao próximo, ou seja, simplesmente ensinado valores. Esta é a melhor proteção que podemos deixar para os nossos filhos.

João Lago.