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terça-feira, 19 de setembro de 2017

Criança Viada, Censura e a Cultura Pop

Em 1982, em meus quinze anos, enquanto aguardava na fila para comprar ingressos para o filme ET o Extraterrestre, no extinto Cine Veneza do centro da cidade de Manaus, podia-se ver os cartazes de filmes com nomes sugestivos como Amor Estranho Amor, Curral de Mulheres, Aluga-se Moças dentre outros. Durante boa parte da minha adolescência a safra do cinema nacional era destinada a um público adulto, ou melhor dizendo, aos maiores de dezoito anos e era comum o juizado de menores fazer diligências em cinemas a procura de eventuais transgressores da lei. A censura, assim organizada durante a ditadura militar, justificava sua extensa estrutura de repressão política também como mantenedora dos bons costumes da família brasileira. Não somente o cinema, mas a música, literatura e as artes de modo geral estavam sujeitas aos censores do governo militar. Por exemplo, a música Je t’aime (moi non plus), repleta de sussurros eróticos em um idioma incompreensível para maioria dos brasileiros recebera a época o carimbo de “impróprio para menores de 18 anos”.

Veio a abertura democrática e esses novos ventos trouxeram uma aversão a tudo que pudesse lembrar os anos de repressão política e a elite intelectual brasileira adquire uma ojeriza a qualquer espécie de controle social que possa significar censura. E no reboque de uma indesejada anarquia moral escuto uma música que diz: “Ah Safada!Na hora de ganhar madeirada, a menina meteu o pé pra casa e mandou um recadinho pra mim: Nós se vê por aí (sic)”. Fica a dúvida se essa canção lúdica, que eventualmente vemos na boca de crianças, refere-se à apologia ao estupro ou ao sexo grupal. No entanto, pode-se dizer que se o cancioneiro popular dos anos oitenta abusava das palavras de duplo sentido com a pretensão de fazer rir, arrisco dizer que neste novo milênio o desejo inerente desse explícito burlesco é o de instituir o salaz com ares de cultura pop.

Entre as várias interpretações do que seja cultura pop, a que mais me agrada é aquela que diz que a mesma é uma inovação que emerge pelo gosto popular (daí o pop) e busca dialogar com a cultura erudita.  Um ícone que explica a cultura pop é o pintor e cineasta Andy Warhol, cuja obra invade as galerias de artes por conquistar o gosto de uma elite jovem intelectualizada. Melhor que Warhol, na música David Bowie é o que mais apropriadamente ilustra o que vem ser a cultura pop, justamente porque suas composições tiveram aceitação tanto pelo jovem suburbano londrino, quanto daquele jovem descolado de South Kensington (bairro nobre da capital inglesa). Assim, apesar de não ser uma cultura de massa, a cultura pop atualmente é massificada pelos jovens nas redes sociais. E por trabalhar uma comunicação instantânea e tão fugaz quanto os próprios acontecimentos que os inspiram, os “memes” podem, a meu ver, serem considerados uma expressão de cultura pop e uma forma de arte.

No dia 10 de setembro o banco Santander cancela a exposição Queermuseu cuja programação deveria seguir até 8 de outubro. O motivo do término antecipado foi a polêmica causada por algumas obras (criança viada que aborda infância e homossexualidade é uma delas) cuja proposta era valorizar a diversidade sexual, mas buscou apenas misturar símbolos cristãos com outras expressões do mundo secular, inclusive as de cunho sexual. Assim, debaixo do protesto de movimentos sociais, o Santander cancela a exposição e em sua nota a imprensa declara: “ouvimos as manifestações e entendemos que algumas obras da exposição Queermuseu desrespeitam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde o seu propósito maior, que é elevar a condição humana”. O banco Santander de maneira amarga percebeu que as ações de marketing de uma instituição financeira que atua de forma plural (varejão para quem preferir este termo) não poderia atuar como a grife de confecção Benetton que na década de 90 lançava campanhas que escandalizavam grupos tradicionais, enquanto agradava ao jovem intelectualizado, contestador e mais incluído no mundo secular, pois esse seria o seu público-alvo. O mais interessante nesta polêmica é que foi o MBL (Movimento Brasil Livre) que se mostra com uma cara jovem, mas com um pé no conservadorismo, que atuou como protagonista, organizando manifestações tanto nas mídias sociais, quanto nas ruas de Porto Alegre, cidade na qual estava a exposição.

Muita se fala de um país dividido e mais recentemente de um cansaço por tudo aquilo que seja politicamente correto, haja vista o desejo do jovem intelectualizado e contestador em rever conceitos e preconceitos antes considerados intocáveis. Logicamente a ideologia de esquerda e a permissividade dos costumes é que está sendo contestada, motivada por uma contrarreação ao ativismo exacerbado que deseja calar tudo que seja contrário ao que desejam incutir na sociedade, inclusive a parcela da “arte” da exposição Queermuseu do Santander como sendo parte da cultura pop e absolutamente não o é. Na minha análise, a fração das obras ali expostas tinha o condão de agradar um nicho que deseja desconstruir os valores morais da ideologia cristã, justamente porque se coloca como resistência a leniência dos costumes. O banco Santander foi convencido tardiamente disto e por isso cancelou a exposição.

A beleza da democracia é justamente permitir a liberdade de expressão, não somente aquela direcionada para agredir símbolos, crenças e pessoas, como bem escreveu o Santander, mas a liberdade de expressão que permite também reagir a essas ofensas sem o receio do patrulhamento do politicamente correto. A censura moderna não é mais aquela promovida pelo Estado, mas aquela empresarial e direcionada ao que seja conveniente para a imagem corporativa e aos negócios, evidentemente a depender de quem seja o seu público alvo.

João Lago