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quarta-feira, 17 de março de 2021

O médico e o monstro


Certamente devo ter tomado conhecimento da existência de Mr. Hyde nos desenhos do Pernalonga, no qual o dócil doutor Jekyll, que o coelho conheceu no parque, o leva para casa para alimentá-lo. Chegando na casa do médico, após tomar uma poção de laboratório, o amável doutor Jekyll transforma-se em um monstro. O desenho animado inspirou-se no livro chamado O Estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde de autoria de Robert Louis Stevenson, publicado em 1886, que narra a obstinação do doutor Jekyll em provar a teoria que a bondade e a perversidade reside em qualquer pessoa, mesmo naquelas mais cordatas. Assim, para provar sua teoria, cria uma poção que quando ele mesmo a toma o transforma em um monstro, cuja personalidade é assumida como Mr. Hyde.

Muito provavelmente Stevenson tomou conhecimento do famoso caso do francês Louis Vivet que foi o primeiro indivíduo a ser diagnosticado com Transtorno Dissociativo de Identidade em 1885, condição mental que leva a dupla (ou múltiplas) personalidades. Poderá ter sido uma coincidência, mas a partir da obra de Stevenson essa pertubação psicológica inspirou inúmeras obras, sendo uma das mais famosas o filme Psicose de Alfred Hitchcock. O enredo é o mesmo, o jovem tímido e aparentemente inofensivo, chamado Norman Bates, assume a personalidade perversa da mãe para cometer assassinato. Essa obra-prima cinematográfica de Hitchcock é de 1960.

O governo Bolsonaro, em pouco mais de dois anos de governo, já trocou três vezes de ministro da saúde e novamente o faz no pior momento da pandemia. Provavelmente passaremos de 300 mil mortos antes do final de março. No entanto, devemos abstrair dessa estatística funesta e buscar identificar entre esses números um pai, uma mãe, um avô, uma avó, um irmão, uma irmã, um amigo, uma amiga, uma pessoa muito querida. A cada centenas de mortes diárias são famílias que choram e enterram seus mortos, muitos sem direito a velório, ou despedidas em cemitérios. Até o abraço fraterno e o enxugar das lágrimas alheias tem o potencial perigo de transmissão do vírus. Vivemos na mais mortal pandemia e ainda tem gente que faz pouco caso disso.

O general Eduardo Pazuello sai do Ministério da Saúde com o aumento de mortes em todos o Brasil e pelo iminente colapso em, pelo menos, vinte cinco unidades da federação. Em situação melhor, mas não confortável, estão somente o Amazonas e o Rio de Janeiro. O Amazonas colapsou em janeiro por falta de oxigênio e Rondônia e o Acre prenunciam que os estoques de oxigênio podem acabar nos próximos treze dias. O problema é idêntico para todos: a demanda é maior que a oferta e em algum momento dessa curva o ponto de convergência é a escassez. No entanto, não é somente oxigênio que preocupa, mas todos os insumos que são essenciais nas UTIs e o exemplo disso é a aquisição emergencial de bloqueadores neuromusculares e anestésicos para a realização de entubação de pacientes em tratamento contra a Covid-19 em Santa Catarina. Se não forem mapeados todos os insumos essenciais para o funcionamento das UTIs e com o aumento da demanda em todo o país, brevemente não será somente oxigênio, nem a falta de leitos que farão os brasileiros morrerem sem assistência médica.

Com a vacinação caminhando a passos trôpegos e com a perspectiva que nessa toada somente em 2024 tenhamos vacinado toda a nossa população adulta, a única alternativa que nos resta é controlar a circulação de pessoas nas cidades e enfatizar o uso de máscara (de forma correta), da higienização das mãos e do distanciamento social. Porém, essas medidas simples esbarram no comportamento negacionista de Jair Bolsonaro, no qual reside a dúvida que com a saída de Pazuello alguma coisa possa mudar em sua atitude, ou veremos o mais do mesmo.

Sai o general e entra o médico Marcelo Queiroga, cardiologista renomado entre os seus pares, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia e que durante essa pandemia já tomou a vacina e defendeu as medidas simples de prevenção já descritas aqui. Demonstra possuir uma alma cordial que agrada quem está a favor da ciência e é contra o negacionismo, mas infelizmente não sabemos o quanto da poção maldita produzida no Planalto que o cordato doutor já tomou. Resta a dúvida se no conflito de obedecer as ordens do monstro, ou seguir sua determinação de bom médico, qual dessas personalidades irá sobressair-se. Para o bem do povo brasileiro torço pelo doutor Jekyll.

João Lago

domingo, 14 de março de 2021

Sociopatia cristã


Estamos próximos a Páscoa e também aproxima-se a sexta-feira da Paixão, na qual os cristãos rememoram o martírio de Jesus Cristo. O cinema já colocou em suas telas várias versões da prisão, flagelo e morte de Cristo, sendo a mais brutal pelo realismo a adaptação de Mel Gilbson de 2004. Ainda que seja uma encenação de um fato histórico para o mundo cristão, muitas pessoas foram as lágrimas nas salas escuras como se realidade estivesse acontecendo diante de seus olhos. A esse sentimento denominamos empatia, ou seja, a capacidade de nos colocarmos na posição do outro e sentirmos as suas dores. Logicamente a mística relacionada a Paixão de Cristo, mesmo antes da invenção do cinema que tem pouco mais de cem anos, contribuiu para que a representação artística da história narrada nos Evangelhos seguissem comovendo e derramando lágrimas de fiéis. Então, o Brasil por ter uma população de maioria cristã deveria ser mais empático e solidário? Infelizmente não é bem assim.

A pandemia que nos assola demonstrou toda a nossa incapacidade de empatia com a dor do outro, ou como explicar que mesmo com os hospitais lotados ainda persista um comportamento irresponsável contra medidas simples, como usar máscara cobrindo o nariz e a boca, lavar as mãos e manter distanciamento social? Essa pretensa rebeldia só pode ser resultado de uma sociopatia coletiva, ou de ignorância combinada com desinformação. Digo isto porque vejo muita gente boa, que se apresenta como cristã, agir contra essas medidas de proteção, ser contra a vacina e ainda pior, acreditar em remédios que a pesquisa médica científica atesta que não servem para covid-19.

É certo que existem sociopatas entre nós e a literatura médica os descrevem muito bem. A revista eletrônica Insider de novembro de 2016, em seu artigo “The Hare Psychopathy Checklist': The test that will tell you if someone is a sociopath” lista vinte comportamentos que podem descrever um comportamento doentio. Não vou descrevê-los todos aqui, pois o texto original pode ser pesquisado no Google, mas posso adiantar que identificar mais de três dos comportamentos listados em qualquer indivíduo pode ser sinal de algo errado. No entanto, os sentimentos enumerados que motivam este texto são a “falta de sensibilidade e ausência de empatia”. Some-se qualquer outro como “apego com a mentira”, “não sentir remorso”, “ser um parasita”, “ausência de metas realistas de longo prazo” etc., podem acender o sinal de alerta para afastar-se dessa pessoa.

Nesse domingo (14/03), novamente em Manaus aconteceu manifestação contra as medidas de circulação de pessoas, promovendo aglomeração de muita gente sem máscara. Vale a pena lembrar que no dia 26 de dezembro do ano passado houve uma idêntica manifestação e o governador Wilson Lima flexibilizou as medidas restritivas e logo em seguida veio o colapso do sistema de saúde com o ingrediente macabro da falta de oxigênio nos hospitais. Centenas de pessoas morreram afogadas no seco sem o direito de lutarem pela vida. Porém, caso necessite ajuda para ser empático a quem não consegue respirar, prenda a respiração e tente permanecer assim por mais de trinta segundos. Muito provável antes de completar um minuto a boca seja aberta em busca de ar. Agora, imagine que mesmo abrindo bem a boca não venha ar e a pessoa continue sentido-se sufocada. Se após esse exercício mental, mesmo assim não venha a empatia por quem sofre com falta de ar neste momento nos hospitais, é bom observar se outros sinais de sociopatia aqui descritos possam ser identificados.

É provável que nem todos os que participam dessas passeatas sejam sociopatas, apenas tem um elevado grau de egoísmo, ou porque nenhum familiar que ame tenha morrido da maneira descrita. Um choque de realidade talvez seja necessário e essas pessoas sejam convidadas a conhecer a agonia nos hospitais, ou voluntariem-se no atendimento as famílias que passam por esse calvário. Quem sabe a dor do outro finalmente os façam abrir os olhos.

No entanto, alguns desses “cidadãos de bem” negacionistas e egoístas talvez nem colocar o seu dedo no buraco dos pregos e a mão no lado de Cristo seja suficiente. São sociopatas cristãos.

João Lago

terça-feira, 2 de março de 2021

Para não dizer que não falei de BBB


Em um vídeo o humorista Murilo Couto, comentando a eliminação de Karol Conká, ironizou que o ódio uniu os expectadores do programa Big Brother Brasil com uma votação recorde para a “rapper”, sendo o ódio mais eficiente que qualquer outro sentimento para engajar pessoas. Essa observação de Murilo Couto não é inédita, pois o escritor russo Anton Tchekhov, que escreveu sua obra nas três últimas décadas do Século XIX, já havia dito que: “nada une tão fortemente como o ódio - nem o amor, nem a amizade, nem a admiração”.

Pessoalmente não me agrada o formato do programa BBB, nem tão pouco o considero como um experimento que possa ser extrapolado para uma análise científica válida para explicar as inter-relações humanas, mesmo porque a produção do entretenimento manipula o comportamento dos participantes por meio de jogos e por disputas internas. No entanto, o que chama a minha atenção, ou desperta o meu interesse, não é que acontece no confinamento interesseiro, mas na reação que causou aqui fora com muita gente séria que analisa política falando de BBB.

Decidi dar minha contribuição ao debate não para comentar BBB, mas fazer uma análise a partir de Murilo Couto e Anton Tchechov que o ódio é o que permeia o discurso político que mais une as pessoas no Brasil. Trata-se de uma dicotomia da luta do bem contra o mal que divide pessoas em dois grupos: a) os amigos, aqueles que pensam igual a mim e; b) os inimigos quem não concorda comigo. Essa foi a estratégia política que venceu as eleições em 2018 e que passado dois anos ainda permanece. No entanto, da mesma forma que parcela da população ficou fatigada com o discurso do “politicamente correto”, agora se sente de saco cheio com a ideologização de qualquer comportamento. Por exemplo, quem apoia a vacina, o uso de máscaras, o distanciamento social e a quarentena como forma de combate a pandemia é chamado de esquerdista, mesmo que pese todas as evidências científicas que essas são as únicas medidas viáveis enquanto a maioria da população não seja vacinada. Assim, com a falta de união do povo brasileiro em torno da ciência chegamos a 250 mil mortos e estamos atrasados na vacinação da população. Sabe-se que o governo federal apostou errado quando apoiou tratamentos não referendados pela ciência e foi negligente e omisso nas medidas simples de combate a covid-19, tendo como garoto propaganda da proliferação do vírus o próprio Jair Bolsonaro. O presidente recusa-se a usar máscara, promove aglomerações por onde passa e critica governadores e prefeitos que, com as UTIs dos hospitais lotadas, restringem a circulação de pessoas e fecham o comércio e os serviços não essenciais buscando frear o avanço da pandemia e salvar vidas.

O Amazonas colapsou em janeiro deste ano com o surgimento de uma nova variante do vírus mais contagiosa que a de março de 2020 que já se espalhou pelo Brasil. As regiões sul e sudeste mais populosas já começam a sentir o efeito dessa mutação do vírus e já veem seus hospitais lotarem e correm para decretar quarentena severa à população. Porém, ignorando completamente os fatos, Jair Bolsonaro ameaça governadores e prefeitos em negar-lhes auxílio emergencial a população caso façam lockdown. É completamente irracional e desumano oferecer como única saída à população expor-se ao vírus e ver morrer conhecidos, amigos e familiares. Portanto, mesmo que Bolsonaro sinta-se incomodado em ser chamado de genocida age como tal.

Sinceramente não espero que Bolsonaro por intercessão das mãos dos líderes religiosos que ainda o apoiam seja convertido para um comportamento cristão. Ter sido batizado nas águas do Rio Jordão pelo pastor presidiário Everaldo parece não ter surgido qualquer efeito. Alguns outros religiosos continuam o apoio cego a Bolsonaro, como Silas Malafaia, que mesmo face ao estado crítico que se encontra os hospitais de Curitiba, reuniu no dia 25 de fevereiro centenas de fiéis em um culto que poderá favorecer a proliferação da covid-19.

Estamos divididos, porque faz parte da estratégia da manutenção do poder de Bolsonaro testar nossa resiliência, pois aposta vencer pelo cansaço ou pela ruptura institucional. Não é segredo que tem apreço pela ditadura militar e que sempre pregou a exterminação da oposição. Portanto, nessa luta entre o que seja o bem e o mal não há uma saída que não passe pelo amor, amizade e admiração. Ter amor pelo próximo, amizade com a verdade e admiração pela ciência.

João Lago.