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domingo, 15 de abril de 2018

A obra e graça do preconceito.



Ela tem 22 anos, é branca, tem olhos verdes profundos e quando abre a boca para cantar encanta pela voz suave e muito afinada. A cantora em questão chama-se Mennel Ibtessim e participava da edição francesa do programa de calouros The Voice, na qual cantou a música de cunho religioso Allelujah (aleluia) de Leonard Cohen, cuja canção já foi traduzida e cantada em diversos idiomas, inclusive em português. A estreia de Mennel no The Voice France 2018 foi vitoriosa, pois logo nas cinco primeiras palavras da canção a cantora Zazie, tão querida e popular na França quanto Ivete Sangalo no Brasil, de pronto apertou o botão e virou sua cadeira, ato que foi seguido por todos os demais jurados do programa.



Mennel apresentou-se no The Voice usando um turbante e cantou a música de Cohen uma parte no idioma original em inglês e outra parte em uma versão em árabe, justificando-a por sua origem Síria e de confissão mulçumana (daí ter coberto os cabelos). Gostei tanto da voz da moça que resolvi buscar outros vídeos de sua continuidade no programa, quando descobri que a mesma abandonou o reality show quando a imprensa encontrou uma postagem sua no twitter em 2016 comentando o atentado terrorista em Nice em 14 de julho daquele ano, data da revolução francesa e feriado naquele país. Mennel escreveu: “C'est bon c'est devenu une routine, une attentat par semaine et toujours pour rester fidèle, le 'terroriste' prend avec lui ses papier d'indentité. C'est vrai que quand on prepare un sale coup on oublié surtout pas de prender ses papier” (15 julho 2016). Em minha livre tradução Mennel escreveu: “É bom que se torne uma rotina, um ataque por semana e sempre para permanecer fiel, o "terrorista" leva com ele a sua carteira de identidade. É verdade que quando preparamos um golpe sujo nos esquecemos de sobretudo não levar os documentos”. Foi o suficiente para uma revolta emergir contra a moça, inclusive com direito a manifestação Marine Le Pen, representante máxima da extrema direita francesa que é contrária a imigração de árabes e demais povos para França. Le Pen disse: “É a menor das coisas que Mennel tenha se excluido do The Voice, ela é a revelação que os fundamentalistas islâmicos utilizam de todos os meios para tornar normal a presença do Islã radical” (C’est la moindre des choses que Mennel se soit exclue de The Voice, elle est le révélateur que les fondamentalistes islamistes utilisent tous les moyens pour normaliser la présence de l’Islam radical).

A ironia é um recurso linguístico que visa atribuir um valor discordante do que é literalmente enunciado, ou seja, podemos em algum momento, para causar impacto, afirmar algo que é frontalmente contrário às nossas próprias convicções. Em alguns momentos específicos, e em fóruns restritos aos amigos e familiares, pode-se usar da ironia, mas jamais se deve usá-la com quem não conhece a nossa visão de mundo, pois poderia interpretar nossas palavras como verdadeiras, principalmente quando são veiculadas em mídias sociais na internet. Outro fato importante é a maturidade, que é um atributo restrito a quem tem a oportunidade de viver muito. Somente o passar dos anos de uma vida fecunda de experiências e estudo faz alguém adquirir maturidade e é natural que se espere dos jovens a impulsividade e dos mais vividos a temperança, apesar de que nem sempre isto é uma verdade absoluta.

Mennel sofreu perseguição por um comentário infeliz feito há dois anos e escrito quando tinha vinte anos, no qual identifico certa dose de ironia e imaturidade. Pelos interesses que a mesma demonstra ter e o seu perfil social, não merece ser identificada como alguém que apoia o jihadismo, mas pela crescente xenofobia existente na França, principalmente contra as pessoas de confissão islâmica, certamente a jovem cantora com o seu turbante deve conhecer de perto a discriminação que parcela da sociedade francesa devota aos mulçumanos desde o início das ondas de atentados em 2015.

O preconceito, como a própria etimologia da palavra retrata, trata-se de uma opinião prévia e formada de forma açodada sem os conhecimentos necessários que a justifique ou a sustente. O que mais vemos nas redes sociais na internet são demonstrações explícitas de preconceitos, sendo essas mídias sociais um território fértil para as mais diversas demonstrações de ódio e rancor. Não se debatem ideias, não se aprofundam conceitos, não se investigam o que há por trás das notícias e das pessoas. O que importa é se a notícia satisfaz nossos preconceitos, mesmo que omitem ou falseiem a verdade. E o mais grave é a polarização, na qual todos são oito ou oitenta, onde todo o mulçumano é terrorista, toda a esquerda é corrupta, ou toda a direita é contra o pobre. Não se trata disso, mas se deve considerar que tem gente que semeia ódio e a divisão do povo para obter ganhos políticos, ou mesmo usa essa divisão para escamotear os seus próprios pecados. Basta observar quem são aqueles que estão nos dois extremos, pois esses são os mais perigosos.

Mennel não pode nos dar mais demonstrações de sua capacidade interpretativa e por mais que tenha se justificado, infelizmente suas infelizes palavras, escritas em um momento inapropriado, ainda irão persegui-la por um bom tempo, tudo por obra e graça do preconceito.

João Lago.

segunda-feira, 9 de abril de 2018

A impunidade de uma sociedade injusta



Em minhas frequências as aulas de Instituição de Direito Público e Privado, no curso de administração no Instituto de Ciências Humanas e Letras – ICHL, na antiga Universidade do Amazonas – UA, tive a oportunidade de estudar direito constitucional, quando aprendi que o Supremo Tribunal Federal – STF tinha como função dirimir assuntos relacionados à Constituição Federal - CF e, essencialmente, ao examinar determinada matéria teria como dever resgatar a intenção do poder constituinte original quando elaborou determinado preceito de direitos e deveres. Essa interpretação da função do STF para mim é primordial, pois na separação dos poderes que rege a nossa democracia, a função de redigir as leis é do Congresso Nacional, cabendo ao poder judiciário implementá-las quando as demandas cheguem aos tribunais. O juiz não investiga e nem colhe provas para um processo, pois o trabalho de investigar é uma função do poder executivo (policia civil e policia federal). Isto significa que não é função do judiciário elaborar as leis e investigar, mas poderá criar jurisprudência e promover a justiça a partir da interpretação da letra do código ao qual se debruça.

Pode-se interpretar que é a jurisprudência que revela a inteligência da lei, quando inúmeros juízes ao examinar fatos distintos chegam a um mesmo discernimento a partir da interpretação da mesma norma jurídica. O direito anglo-saxônico (common law) utiliza-se a das decisões dos tribunais como fator primordial para a procedência de causa em um novo fato, pois se um cidadão em outro tribunal teve a deferência de seu pedido aceito, como todos são iguais perante a lei, nada mais justo que alguém que esteja em mesma situação tenha seu pedido aceito em sua defesa ou em sua acusação. Porém, a história da democracia indica que desde o século XVII é de John Locke, na clássica separação dos poderes, a aversão (respaldado por Montesquieu) da possibilidade dos juízes doutrinarem, mas já naquela época admitia-se que as generalizações fossem feitas de coisa julgada, ou seja, sendo essa a limitação dos juízes. Todavia, no caso de dúvidas, a interpretação da lei caberia não aos juízes, mas ao parlamento para dirimir a questão, sendo este o conceito do civil law que indica mais o apego ao que está escrito na lei do que propriamente das decisões dos tribunais, equilibrando o poder do judiciário com o do legislativo.

Falar de commom law e civil law é tão atual, para entender a atuação do STF, justamente porque o direito brasileiro tem inspiração no civil law e por isso é tão distinto, por exemplo, do direito praticado nos EUA. Os tribunais no Brasil julgam o fato em comparação com a letra da lei e, havendo dúvida quanto à coisa julgada, pode-se recorrer à instância imediatamente superior na busca de uma nova interpretação para absolvição ou condenação. Em último caso, havendo suspeita que princípios fundamentais do cidadão garantidos na CF estejam sendo violados, pode-se recorrer ao STF. Daí porque os advogados de Lula recorreram com um habeas corpus ao STF para livrá-lo da prisão, pois pediam que se revisasse o artigo 5º da CF, inciso LVII, que diz: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O problema é que os manuais de direito consideram o “trânsito julgado” quando não há mais possibilidade das partes recorrerem e é justamente nesta redação que cinco ministros, vencidos pela maioria, dão seu entendimento que seja inconstitucional a prisão após a condenação em segunda instância, essa mesma que levou Lula a cadeia. Esses cinco ministros voltam as suas costas togadas para a impunidade que a redação isolada da lei provoca na sociedade, pois está mais do que certo que as cadeias estão abarrotadas de pobres miseráveis que não tem acesso a bons advogados.  E que são considerados “bons advogados” não para provarem a inocência de seus clientes, mas por meio de inúmeros recursos possíveis, nas diversas instâncias da justiça, postergarem a prisão de seus clientes até a prescrição do crime cometido. Lógico que a OAB é contra a prisão em segunda instância da mesma forma que taxistas odeiam o Uber, pois em ambos os casos, uma e outro, vem para atrapalhar os negócios. Quanto mais tempo ficam com um cliente, quantos mais recursos possíveis, mais ganham dinheiro. Logo, quem não tem como pagar, vai para a cadeia tão precocemente.

Esta reflexão pede tão somente aos ilustres ministros do STF que não olhem apenas para o artigo 5º da CF, mas voltem também os seus olhos para o artigo 3º, inciso I que diz: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Também deveriam ler o inciso IV desse mesmo artigo que diz: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Tanto o artigo 3º quanto o 5º tratam das chamadas “cláusulas pétreas” da CF que não podem ser mudadas a não ser por uma nova constituição. Ambos têm mesma importância e analisá-los isoladamente não é interpretar a CF, mas buscar forma casuística no debate que venham a privilegiar um grupo de aquinhoados.

Não se pode construir uma sociedade justa quando os ricos e poderosos conseguem livrar-se de seus crimes e os pobres são os que verdadeiramente vão direto para a cadeia. Não se pode promover o bem de todos quando a sociedade privilegia o rico com a impunidade e a justiça seja um valor subjetivo para os demais. Portanto, se é para julgarem o texto escrito resgatando a intenção do poder constituinte quando ditaram a CF, não foi essa a sociedade que os brasileiros de bem desejaram e desejam para si. Justiça sem igualdade e voltando as costas para o bem de todos, não é justiça.

João Lago.