Ela tem 22 anos, é branca, tem
olhos verdes profundos e quando abre a boca para cantar encanta pela voz suave
e muito afinada. A cantora em questão chama-se Mennel Ibtessim e participava da
edição francesa do programa de calouros The Voice, na qual cantou a música de
cunho religioso Allelujah (aleluia) de Leonard Cohen, cuja canção já foi
traduzida e cantada em diversos idiomas, inclusive em português. A estreia de
Mennel no The Voice France 2018 foi vitoriosa, pois logo nas cinco primeiras palavras
da canção a cantora Zazie, tão querida e popular na França quanto Ivete Sangalo
no Brasil, de pronto apertou o botão e virou sua cadeira, ato que foi seguido
por todos os demais jurados do programa.
Mennel apresentou-se no The Voice
usando um turbante e cantou a música de Cohen uma parte no idioma original em
inglês e outra parte em uma versão em árabe, justificando-a por sua origem
Síria e de confissão mulçumana (daí ter coberto os cabelos). Gostei tanto da
voz da moça que resolvi buscar outros vídeos de sua continuidade no programa,
quando descobri que a mesma abandonou o reality
show quando a imprensa encontrou uma postagem sua no twitter em 2016
comentando o atentado terrorista em Nice em 14 de julho daquele ano, data da
revolução francesa e feriado naquele país. Mennel escreveu: “C'est bon c'est
devenu une routine, une attentat par semaine et toujours pour rester fidèle, le 'terroriste' prend avec lui ses papier d'indentité. C'est vrai que
quand on prepare un sale coup on oublié surtout pas de prender ses papier”
(15 julho 2016). Em minha livre tradução Mennel escreveu: “É
bom que se torne uma rotina, um ataque por semana e sempre para permanecer
fiel, o "terrorista" leva com ele a sua carteira de identidade. É
verdade que quando preparamos um golpe sujo nos esquecemos de sobretudo não levar
os documentos”. Foi o suficiente para uma revolta emergir contra a moça,
inclusive com direito a manifestação Marine Le Pen, representante máxima da
extrema direita francesa que é contrária a imigração de árabes e demais povos
para França. Le Pen disse: “É a menor das coisas que Mennel tenha se excluido
do The Voice, ela é a revelação que os fundamentalistas islâmicos utilizam de
todos os meios para tornar normal a presença do Islã radical” (C’est la moindre des choses que Mennel se
soit exclue de The Voice, elle est le révélateur que les fondamentalistes
islamistes utilisent tous les moyens pour normaliser la présence de l’Islam
radical).
A ironia é um recurso linguístico
que visa atribuir um valor discordante do que é literalmente enunciado, ou
seja, podemos em algum momento, para causar impacto, afirmar algo que é frontalmente
contrário às nossas próprias convicções. Em alguns momentos específicos, e em
fóruns restritos aos amigos e familiares, pode-se usar da ironia, mas jamais se
deve usá-la com quem não conhece a nossa visão de mundo, pois poderia
interpretar nossas palavras como verdadeiras, principalmente quando são
veiculadas em mídias sociais na internet. Outro fato importante é a maturidade,
que é um atributo restrito a quem tem a oportunidade de viver muito. Somente o
passar dos anos de uma vida fecunda de experiências e estudo faz alguém
adquirir maturidade e é natural que se espere dos jovens a impulsividade e dos
mais vividos a temperança, apesar de que nem sempre isto é uma verdade
absoluta.
Mennel sofreu perseguição por um
comentário infeliz feito há dois anos e escrito quando tinha vinte anos, no
qual identifico certa dose de ironia e imaturidade. Pelos interesses que a
mesma demonstra ter e o seu perfil social, não merece ser identificada como
alguém que apoia o jihadismo, mas pela crescente xenofobia existente na França,
principalmente contra as pessoas de confissão islâmica, certamente a jovem
cantora com o seu turbante deve conhecer de perto a discriminação que parcela da
sociedade francesa devota aos mulçumanos desde o início das ondas de atentados
em 2015.
O preconceito, como a própria
etimologia da palavra retrata, trata-se de uma opinião prévia e formada de
forma açodada sem os conhecimentos necessários que a justifique ou a sustente.
O que mais vemos nas redes sociais na internet são demonstrações explícitas de
preconceitos, sendo essas mídias sociais um território fértil para as mais
diversas demonstrações de ódio e rancor. Não se debatem ideias, não se
aprofundam conceitos, não se investigam o que há por trás das notícias e das
pessoas. O que importa é se a notícia satisfaz nossos preconceitos, mesmo que
omitem ou falseiem a verdade. E o mais grave é a polarização, na qual todos são
oito ou oitenta, onde todo o mulçumano é terrorista, toda a esquerda é
corrupta, ou toda a direita é contra o pobre. Não se trata disso, mas se deve
considerar que tem gente que semeia ódio e a divisão do povo para obter ganhos
políticos, ou mesmo usa essa divisão para escamotear os seus próprios pecados.
Basta observar quem são aqueles que estão nos dois extremos, pois esses são os
mais perigosos.
Mennel não pode nos dar mais
demonstrações de sua capacidade interpretativa e por mais que tenha se
justificado, infelizmente suas infelizes palavras, escritas em um momento
inapropriado, ainda irão persegui-la por um bom tempo, tudo por obra e graça do
preconceito.
João Lago.
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