Este texto foi escrito em 2010 pelo autor, que republica neste blog em resposta a Danilo Gentili, que diz que não existe nada de errado em assediar moralmente alguém pela cor da pele, peso corporal, tamanho, opção sexual etc.
RAÍZES MESTIÇAS
Quando criança logo
aprendi que não se devia valorizar muito os apelidos que outras crianças podiam
atribuir-me, pois a aderência de uma alcunha pejorativa é proporcional a quanto
demonstramos nos incomodar com o apelido. Assim, agindo dessa maneira,
desviei-me com galhardia da pecha de vários apelidos depreciativos. Já em Ribeirão
Preto, no interior de São Paulo, nos meados dos anos noventa, aos trinta e
poucos anos, tive um colega de trabalho que sabendo de minha origem amazônica
passou a chamar-me de paiakã, nome de um índio que ficou conhecido
nacionalmente por ter estuprado uma professora no Pará.
O apelido sinceramente
incomodava-me, mas agir como criança com um adulto com comportamento infantil
tinha demonstrado ser pouco inteligente, pois uma criança exerce sua crueldade
para com outra criança com inocência, já o adulto é cruel com outro por sua
própria perversidade. Uma criança deve ser educada a agir de modo diferente, já
um adulto que demonstra não ter tido educação, merece uma lição, mesmo que
tardia, a experimentar de seu próprio veneno.
O sujeito em questão é
o estereótipo do “italianado”, algo como um cachorro mestiço que na falta de um
pedigree diz para todo mundo que a tatara, tataravô era um pastor alemão. No
entanto, ele não é o único naquela região, assim como não é único no Brasil. O
Faustão da Globo, que é Silva, vez por outra enaltece um e outro televisivo
falando de raízes italianas, modo ser italiano, reforçando esse tipo “italianado”
falastrão, de má educação, como se tudo isto fosse de sinônimo de sinceridade e
autenticidade, ou como se todos os italianos tivessem este tipo de
comportamento mal educado.
Na milésima vez que
fui chamado de paiakã pelo sujeito, resolvi revidar e disse assim:
- Olha, eu tenho
orgulho de trazer nas feições do meu rosto as minhas origens indígenas, mas e
você, quais são as tuas raízes?
Ele de pronto
respondeu: - Ora, eu tenho sangue italiano...
E antes que ele
continuasse, eu disse: - Você sabia que os italianos chegaram aqui em São Paulo
logo depois da abolição dos escravos para substituir a mão-de-obra africana?
Chegavam no Brasil em navios que pouco se diferenciavam em insalubridade dos
navios negreiros do início do século XIX, e vinham fugindo da fome, quase que
deportados pelo governo italiano que até pagava a passagem de ida?
O sujeito, meio que
estupefato com a minha reação, antes tão passiva, logo eu continuei:
- Os italianos
enganados com a promessa de terra fácil e farta, logo tiveram que ocupar as
terras a noroeste de São Paulo, aqui mesmo em Ribeirão Preto e começaram a
enriquecer plantando café, mas faltava mulher. Foi quando companhias de
prostitutas francesas, em uma espécie de Petit-Paris, vinham prestar serviços
para os fazendeiros italianados. Muitos deles apaixonavam-se pelas francesas e
casavam-se com ela, muito antes de Odair José ter escrito “Eu vou tirar você
desse lugar”.
Ele deu um sorriso
meio sem graça, olhando para as outras pessoas que estavam ao redor e eu
continuei:
- Certamente sei que
tenho sangue de índio, provavelmente também sangue de negro e talvez até um
pouquinho de sangue de branco, tudo misturado como escreveu Darcy Ribeiro e
Gilberto Freire. Sei quem eu sou e também sei o que não desejo ser, um
italianado arrogante, bossal, tatara, tataraneto de uma prostituta.
Disse isso tudo, virei
as costas e fui embora. Bem, depois disto nunca mais fui chamado de paiakã pelo
sujeito, mas também certamente ganhei um desafeto. Coisas da vida, que hoje
somente rendem uma boa história.
Não tenho preconceitos
contra prostitutas, pois de uma maneira geral não acredito que nenhuma mulher
deseje de livre vontade exercer essa atividade degradante e perigosa, mas
também sei que existem palavras ferem muito mais que um soco e, naquele momento,
nada mais pejorativo para um sujeito pernóstico suspeitar de não ter origens
assim tão nobres.
Quanto aos que se
dizem italianados, nada contra, mas também nada a favor, basta deixar de
assistir Faustão, pois agora os italianados pedantes estarão novamente em festa
com essa nova novela da Globo, Passione, Terra Nostra etc.
João Lago
Administrador, professor e morador do Conjunto Santos Dumont
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