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quarta-feira, 19 de março de 2014

Raizes mestiças



Este texto foi escrito em 2010 pelo autor, que republica neste blog em resposta a Danilo Gentili, que diz que não existe nada de errado em assediar moralmente alguém pela cor da pele, peso corporal, tamanho, opção sexual etc.

RAÍZES MESTIÇAS

Quando criança logo aprendi que não se devia valorizar muito os apelidos que outras crianças podiam atribuir-me, pois a aderência de uma alcunha pejorativa é proporcional a quanto demonstramos nos incomodar com o apelido. Assim, agindo dessa maneira, desviei-me com galhardia da pecha de vários apelidos depreciativos. Já em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, nos meados dos anos noventa, aos trinta e poucos anos, tive um colega de trabalho que sabendo de minha origem amazônica passou a chamar-me de paiakã, nome de um índio que ficou conhecido nacionalmente por ter estuprado uma professora no Pará.

O apelido sinceramente incomodava-me, mas agir como criança com um adulto com comportamento infantil tinha demonstrado ser pouco inteligente, pois uma criança exerce sua crueldade para com outra criança com inocência, já o adulto é cruel com outro por sua própria perversidade. Uma criança deve ser educada a agir de modo diferente, já um adulto que demonstra não ter tido educação, merece uma lição, mesmo que tardia, a experimentar de seu próprio veneno.

O sujeito em questão é o estereótipo do “italianado”, algo como um cachorro mestiço que na falta de um pedigree diz para todo mundo que a tatara, tataravô era um pastor alemão. No entanto, ele não é o único naquela região, assim como não é único no Brasil. O Faustão da Globo, que é Silva, vez por outra enaltece um e outro televisivo falando de raízes italianas, modo ser italiano, reforçando esse tipo “italianado” falastrão, de má educação, como se tudo isto fosse de sinônimo de sinceridade e autenticidade, ou como se todos os italianos tivessem este tipo de comportamento mal educado.

Na milésima vez que fui chamado de paiakã pelo sujeito, resolvi revidar e disse assim:

- Olha, eu tenho orgulho de trazer nas feições do meu rosto as minhas origens indígenas, mas e você, quais são as tuas raízes?

Ele de pronto respondeu: - Ora, eu tenho sangue italiano...

E antes que ele continuasse, eu disse: - Você sabia que os italianos chegaram aqui em São Paulo logo depois da abolição dos escravos para substituir a mão-de-obra africana? Chegavam no Brasil em navios que pouco se diferenciavam em insalubridade dos navios negreiros do início do século XIX, e vinham fugindo da fome, quase que deportados pelo governo italiano que até pagava a passagem de ida?

O sujeito, meio que estupefato com a minha reação, antes tão passiva, logo eu continuei:

- Os italianos enganados com a promessa de terra fácil e farta, logo tiveram que ocupar as terras a noroeste de São Paulo, aqui mesmo em Ribeirão Preto e começaram a enriquecer plantando café, mas faltava mulher. Foi quando companhias de prostitutas francesas, em uma espécie de Petit-Paris, vinham prestar serviços para os fazendeiros italianados. Muitos deles apaixonavam-se pelas francesas e casavam-se com ela, muito antes de Odair José ter escrito “Eu vou tirar você desse lugar”.

Ele deu um sorriso meio sem graça, olhando para as outras pessoas que estavam ao redor e eu continuei:

- Certamente sei que tenho sangue de índio, provavelmente também sangue de negro e talvez até um pouquinho de sangue de branco, tudo misturado como escreveu Darcy Ribeiro e Gilberto Freire. Sei quem eu sou e também sei o que não desejo ser, um italianado arrogante, bossal, tatara, tataraneto de uma prostituta.

Disse isso tudo, virei as costas e fui embora. Bem, depois disto nunca mais fui chamado de paiakã pelo sujeito, mas também certamente ganhei um desafeto. Coisas da vida, que hoje somente rendem uma boa história.

Não tenho preconceitos contra prostitutas, pois de uma maneira geral não acredito que nenhuma mulher deseje de livre vontade exercer essa atividade degradante e perigosa, mas também sei que existem palavras ferem muito mais que um soco e, naquele momento, nada mais pejorativo para um sujeito pernóstico suspeitar de não ter origens assim tão nobres.

Quanto aos que se dizem italianados, nada contra, mas também nada a favor, basta deixar de assistir Faustão, pois agora os italianados pedantes estarão novamente em festa com essa nova novela da Globo, Passione, Terra Nostra etc.

João Lago
Administrador, professor e morador do Conjunto Santos Dumont

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