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domingo, 6 de junho de 2021

O Brasil na borda da Terra Plana


Pessoalmente considero a ciência como um imenso quebra-cabeça de peças embaralhadas pelo avesso em cima de uma mesa. Demora-se no início para conseguir juntar as primeiras peças, pois às vezes pegamos algumas que parecem encaixar, mas que ao final não cabem. No entanto, a partir do momento que mais peças vão sendo encaixadas o trabalho acaba por se tornar menos fatigante. Para ilustrar este meu pensamento, lembro da citação atribuída a Isaac Newton que diz: “Se cheguei até aqui foi porque me apoiei no ombro de gigantes”. O pai da física moderna referia-se a Nicolau Copérnico, Johannes Kepler, Galileu Galilei, Giordano Bruno dentre outros que contribuíram para o nosso entendimento do que é o Universo. Depois de Isaac Newton vieram Albert Einsten, Max Planck, Stephen Hawking que foram alguns que encaixaram novas peças nesse imenso quebra-cabeça que ainda contém muitas peças soltas.

Admirador de física teórica, um dos livros mais importantes para conhecer como ocorre o avanço da ciência está na obra Estrutura das Revoluções Científicas escrita pelo físico Thomas Kuhn. Nesse livro, Kuhn deixa de lado os conceitos de difícil compreensão para quem nada entende de física teórica e aborda a filosofia da ciência. Assim, Kuhn passa a descrever que a ciência evolui não somente no embate das ideias, mas a partir de evidências científicas que refutam um conceito anterior e com a adesão simultânea da maioria de uma comunidade acadêmica. A revolução ocorre quando a ideia subjacente esteja sumariamente desconstruída pelo novo. Um exemplo é o Geocentrismo de Ptolomeu que colocava a Terra estática, como o centro de tudo, e o universo girando ao seu redor. A teoria desenvolvida por Ptolomeu tinha uma base científica que explicava muito grosseiramente os fenômenos celeste e foi ensinada nas escolas até o século XVI. No entanto, apesar de rudimentar, desconstruir a ideia que a Terra era o centro do universo levou Giordano Bruno à fogueira e Galileu Galilei por muito pouco também não virou churrasco, ambos na Inquisição Católica. O ceticismo em aceitar que a Terra era apenas mais um dos oito planetas que giram ao redor do Sol estava baseada nas interpretações bíblicas de Eclesiastes 1:5 (o sol se levanta, o sol se põe, e se apressa a voltar ao seu lugar, de onde volta a sair) e de Salmos 93:1 (assim a terra está firme e não cambaleia) que respectivamente não afirmam que a Terra esteja no centro do universo. Pois, qualquer um pode ler qualquer trecho da Bíblia e construir sua própria interpretação, mas isso não é ciência, apenas demonstração de uma fé que pode ser e é questionada nas religiões.

O depoimento de Nise Yamaguchi, na Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI da covid-19 no senado federal, foi muito comparado com o depoimento de Luana Araújo. A primeira médica oncologista, suspeita de integrar o gabinete paralelo no Ministério da Saúde - MS e por parecer sustentar uma visão negacionista contra a vacina e em desfavor das medidas de proteção individual, como o uso de máscara e o distanciamento social. Já Luana Araújo, doutora infectologista e defensora de tudo que Yamaguchi parece negar, foi demitida do MS sem sequer tomar posse por estar mais afinada com a filosofia da ciência de Thomas Kuhn. A fim de exemplificar, Luana Araújo, respondendo ao senador negacionista Eduardo Girão (Podemos-CE) quando este apontou algumas falhas da OMS (Organização Mundial de Saúde) e da opinião de quatorze mil profissionais de saúde que apoiam o tal “tratamento precoce” (sem qualquer comprovação científica), a infectologista respondeu:

- “Se o senhor não quiser levar a OMS em consideração, é de direito, mas aí a gente vai precisar ignorar NHS (National Health Service) que é o serviço de saúde britânico, a gente vai precisar ignorar o CDC (Centers of Disease Control and Prevention)– Centro de Controle e Prevenção de Doenças (EUA), a gente vai precisar ignorar o FDA (Food and Drug Administration) que é a agência americana (estadunidense) de alimentos e drogas, o EMA (European Medicines Agency) que é a agência europeia de medicações, a IDSA (Infectious Diseases Society of America) que é a Sociedade Americana de Doenças Infecciosas, (…) porque todas essas instituições têm exatamente a mesma posição sobre o tratamento precoce. Então, com todo o respeito que devo aos meus colegas, aos quatorze mil que o senhor cita, infelizmente a gente precisa entender a ciência como uma coisa muito além das nossas limitações pessoais e eu me coloco nisso. Então, eu preciso aprender com o quê as pessoas estão dizendo e ter criticidade para entender isso”.

Luana Araújo cita organizações prestigiosas que tem sede em países que inicialmente controlaram a pandemia de covid-19 com lockdown e depois com vacinação em massa de sua população. Paradoxalmente, quando os senadores governistas querem citar países que usam cloroquina como “tratamento precoce” apontam Cuba e Venezuela como paradigma, justamente dois países que são ditaduras de esquerda. Será que esses quatorze mil profissionais de saúde são, na verdade, comunistas esquerdopatas que pregaram uma peça em Bolsonaro com o intuito de fazê-lo fracassar? Estou sendo irônico, mas considerando um governo que não tem nenhum pudor em mentir e construir realidades paralelas, não ficarei surpreso se nas redes bolsonaristas esta versão começar a fazer coro.

A semana que inicia aponta cada vez mais indícios da existência do “gabinete paralelo” que se demonstrava contra as vacinas, contra o distanciamento social, em desfavor ao uso de máscaras e francamente apoiador do contágio da população para atingir a famigerada “imunidade de rebanho”. O resultado disto são quase 500 mil vidas perdidas, muitas delas evitáveis se tivéssemos iniciado a vacinação em companhia de EUA e Reino Unido, mas para isso teríamos que ter um governo sintonizado na ciência, mas ao contrário disto está o Brasil ainda discutindo cloroquina, tratamento precoce e com um governo sentado na beira da Terra Plana.

João Lago

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