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domingo, 27 de junho de 2021

A vontade de Deus

Há tempos o homem pergunta-se qual a vontade de Deus e para ilustrar esta reflexão lembrei-me do teto da capela sistina que retrata não somente, mas principalmente, os primeiros capítulos do livro de Gênesis. Pintada por Michelangelo, o centro do afresco mostra a criação do homem, na qual Adão e o Criador parecem com os seus braços e mãos estendidos, mas não se tocam. Uma versão da intenção de Michelangelo é a de deixar Adão separado de Deus pela flexão do dedo indicador, ou seja, bastaria o primeiro homem esticar o dedo para tocá-lo. Esse gesto é uma interpretação do livre arbítrio, pois a reconciliação do homem com o seu criador estaria tão somente limitada a vontade humana de alcançá-lo. No entanto, é certo que a doutrina cristã coloca a corrupção humana pelo pecado como empecilho para essa reconciliação, mas foi vontade de Deus, por amor a sua criação, enviar Cristo para redenção dos nossos pecados. Cristo veio ao mundo e a seu tempo não foi muito bem compreendido em suas palavas de amor e redenção, tanto que foi necessário morrer na cruz pelos pecados dos homens.


Arthur Lira (PP-AL) presidente da Câmara Federal, muito antes da Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI que acontece no senado, já recebeu sessenta e oito pedidos de impeachment, sendo que somente seis pedidos foram analisados por Lira que restaram arquivados ou desconsiderados. Em minha análise, quando a CPI instalou-se a sua intenção era produzir a “mãe de todos os pedidos de impeachment” a partir da ação supostamente criminosa de Bolsonaro agir para deixar o coronavírus espalhar-se e contaminar mais rapidamente um maior número de pessoas para enfim alcançar a famigerada “imunidade de rebanho”, na qual o vírus deixaria de circular e o contágio e as mortes cessariam. Seria a base desse pedido de impeachment a interpretação do descaso de Bolsonaro para a compra de vacinas, sua insistência em querer empurrar cloroquina como um remédio que previne a doença e o seu comportamento pessoal de não usar máscaras, de promover aglomerações e de desqualificar as medidas adotadas pelos governadores e prefeitos para frear o contágio do vírus, como fechamento temporário de comércio e serviços não essenciais. Entretanto, com o depoimento dos irmãos Miranda na CPI na última sexta-feira (25/6), ficou claro pelas falas de alguns senadores e senadoras que os trabalhos agora têm uma nova frente mais robusta de investigação: o golpe bilionário da compra de vacinas da covaxin que estava sendo ministrado nas veias do Ministério da Saúde.


O livre arbítrio e a vontade de Deus, inicialmente expostas, ganham correlação com três fatos. Primeiro a insistência que Bolsonaro declara que: “somente Deus me tira dessa cadeira presidencial”. Segundo as manifestações ocorridas que levaram milhares de pessoas às ruas pelo impeachment de Bolsonaro e que pressionam o Congresso Nacional a partir do aumento da adesão da população ao “fora Bolsonaro”. Por último, está nas mãos de Arthur Lira, que tem o poder constitucional para tal, aceitar qualquer um dos pedidos que estão engavetados ou aguardar que a CPI produza um material explosivo que possa incendiar ainda mais as ruas, assim como se não bastassem os 500 mil mortos e a ameça real que Bolsonaro é para a saúde pública e para a democracia no Brasil. A “Aliança pelo Brasil” de Bolsonaro com o Centrão de Arthur Lira e Ricardo Barros, ambos do Partido Progressistas (PP), fez que em 20 de maio último o presidente desse a seguinte declaração: “Fui do PP por muito tempo. Ele (senador Ciro Nogueira atual presidente do PP) não está apaixonado por mim, mas está me namorando, quer que eu retorne ao PP. Quem sabe, se ele souber conversar, for bom de papo, quem sabe a gente volte. Não estou me fazendo de difícil, é um grande partido”. Bolsonaro assim se manifestou porque precisa de uma legenda para concorrer em 2022 e o caminho mais cômodo seria abraçar-se de vez com Lira, Nogueira e Barros. Parece que essa “trindade” (que não é santa) está ameaçada pelas forças sinistras que induzem os homens a corrupção dos pecados.


O deputado Luís Miranda (DEM-DF), com o apoio de seu irmão, colocou Bolsonaro nu e as evidências demonstram que será necessário “construir uma narrativa” (termo na ponta da língua dos bolsonaristas quando o assunto é a CPI) para lá fantástica que possa esclarecer todas as convergências que puseram Bolsonaro despido no colo do PP em um namoro não muito inocente para os padrões conservadores. A última coincidência aconteceu em 6 de maio quando Bolsonaro nomeou a mulher de Barros para uma cadeira no conselho de administração da Itaipu Binacional, com um salário de R$ 27 mil, para comparecer em reunião que acontece a cada dois meses. É importante que se diga que quando Bolsonaro nomeou Cida Borghetti e anunciou namoro com o PP, ele já tinha sido avisado em 20 de março, pelos irmão Miranda, da irregularidade criminosa da importação das vacinas da covaxin, portanto não somente deixou de levar adiante a investigação para a Polícia Federal, conforme prometera, bem como resolver premiar a Barros e sua mulher. Para provar tudo isso, o delator Luís Miranda insinuou que existe uma gravação da conversa que tiveram com Bolsonaro e o ameça para que não ouse desmenti-lo. Se provado que foi avisado e nada fez, independente das vacinas terem sido compradas ou não, Bolsonaro cometeu o crime de prevaricação e corrupção passiva, artigos 319 e 317 respectivamente do código penal que, por ironia, somados dão pena máxima de 13 (treze) anos. Os mais leigos poderiam perguntar: mas qual seria a vantagem recebida por Bolsonaro? Simples, manter o apoio do PP, principal partido do Centrão, não desagradando Lira que tem a chave da gaveta dos pedidos de impeachment e arrastar-se como presidente até o final de 2022 e preparar o golpe anunciado contra as urnas eletrônicas e a falácia do “voto impresso e auditável”. Bolsonaro insisti em ignorar que em vinte e cinco anos não houve nenhum registro de fraude no processo eleitoral brasileiro e que ele mesmo vem sendo eleito a sucessivos mandatos pela mesma urna que hoje desacredita.


O ditado popular diz que “Deus escreve certo por linhas tortas” e esse Deus que Bolsonaro tanto cita parece querer demonstrar qual seja a sua vontade, porque outro ditado diz: “o povo é a voz de Deus”, neste caso a voz de Deus reverbera nas bocas de uma multidão está indo para as ruas protestar. No entanto, é uma incógnita se Arthur Lira tenha se arrependido dos engavetamentos dos pedidos de impeachment, pedido penitência de seus pecados e esticado o dedo para alcançar Deus. Não existe citação bíblica que possa encaixar-se mais nos acontecimentos que: “e conhecerão a verdade, e a verdade libertará vocês” (João 8:32). Que a CPI traga toda e verdade que precisamos para nos libertar de Bolsonaro.


João Lago

domingo, 20 de junho de 2021

A necessidade de unificação das vozes nas ruas


As manifestações que ocorreram no último sábado (19/6) demonstram uma reação de uma maioria insatisfeita com a destruição sistemática de valores que nos distinguem como nação civilizada. A Amazônia sendo reduzida a toras de madeira e seus rios contaminados por garimpeiros de mercúrio que tornam inservíveis peixes para alimentação dos povos tradicionais. Grileiros apoderam-se das terras devastadas pelos madeireiros ilegais transformando em pasto o que um dia foi o lar de várias espécies de animais e plantas. Os nascidos nessa terra sabem que o solo amazônico esconde um paradoxo de floresta exuberante e solo frágil. Retira-se a cobertura vegetal e o que sobra é um solo amarelado que não serve para agricultura de larga escala sem uma onerosa correção de solo.

Se a ameaça ao meio ambiente per si já fosse suficiente para exortar a derrubada de um governo, veio a pandemia e demonstrou como é importante que uma nação tenha um governante com empatia pelo seu povo. Boris Johnson, primeiro-ministro inglês, passou de negacionista da ciência a um defensor do lockdown, do uso de máscaras e providenciou vacinas para imunizar os seus concidadãos, mas sem antes passar ele próprio por uma internação para curar sua covid-19. É perdoável sua atitude inicial, pois o SARS-CoV-2 era uma incógnita quanto ao seu tratamento e várias tentativas foram lançadas mesmo antes dos ensaios clínicos. Muitos dos tratamentos que hoje são aplicados nas UTIs, como o uso de antibióticos, anticoagulantes e corticoides, tiveram sua eficácia comprovada, em reduzir os efeitos nefastos do vírus em nosso corpo, pela análise clínica dos pacientes. Na esteira da crescente lotação dos hospitais, medicamentos foram sendo testados e descartados por não apresentarem qualquer benefício que pudesse prevenir que casos severos pudessem evoluir para a morte do paciente. Países civilizados abandonaram o “achismo” e começaram a apostar nas vacinas e nas medidas não farmacológicas para proteger sua população. O resultado está visível diante dos nossos olhos, pois Reino Unido, EUA, Israel, Canadá a medida que ultrapassam mais de 50% de sua população vacinada, as hospitalizações e mortes decrescem e já começam, mesmo que com muito cuidado, a flexibilizar o uso de máscaras e permitir aglomerações em eventos públicos e privados. Bem diferente do Brasil que com pouco menos de 15% de nossa população vacinada com a segunda dose, tem um governante que manda o seu ministro da saúde estudar desobrigar o uso de máscaras para os já vacinados e reiteradamente ainda defende cloroquina como esperança de cura para covid-19.

No entanto, se somente o meio ambiente e a saúde do brasileiro não fossem motivos suficientes para uma revolta popular, será que a perda da liberdade democrática, com sucessivos arrotos de golpe, não poderia despertar uma ação política constitucional para apear um governo que age para destruir o que conquistamos em apenas um terço de século? Um governo errático em sua lida no meio ambiente e na saúde pública poderia ganhar carta branca ditatorial para suprimir a imprensa, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal e agir livremente sem oposição em suas ações? Talvez se economicamente o Brasil estivesse em pleno emprego poderiam vozes serem levantadas pela necessidade de ignorarmos tudo isso e aguentarmos mais um ano e meio de agonia política e social? Infelizmente a inflação aproxima-se perigosamente dos dois dígitos e os juros começam a subir com previsão da taxa Selic (que baliza os juros básicos da economia), que já foi 2%, chegar no final de 2021 em 5,5% ao ano. Comércios fechados pelos erros na condução da pandemia, desemprego aumentando em função disso, compõe a cereja colocada nesse monte de estrume produzido pelo governo Bolsonaro. Não há nada que justifique a manutenção desse governo e as manifestações que não deveriam acontecer em um momento tão grave da pandemia, com mais de 500 mil vidas perdidas, são uma reação de desespero para sinalizar que o copo transbordou.

Em Manaus, o número de manifestantes aumentou nas ruas desde 29 de maio, mas a pauta daqueles que usaram o microfone do alto do carro de som usavam a pandemia como pano de fundo de suas próprias reivindicações. Até as pedras do caminho sabem que Bolsonaro demonstra ser homofóbico, misógino e flerta com supremacistas brancos, mas um discurso voltado para o próprio umbigo, ainda que necessário, estrategicamente deixa uma ideia difusa sobre o porquê de irmos as ruas pedir pela saída de Bolsonaro. As próximas manifestações devem pautar que Bolsonaro é uma ameaça a saúde pública, ao meio ambiente e a nossa democracia, além do que, sem essa última sequer estaríamos nas ruas pedindo o seu impeachment. É necessário compreender que todas as demais pautas sociais são importantes, mas secundárias em um momento em que precisamos fazer que mais pessoas possam compreender como é grave o momento político no qual vivemos, no qual a cooptação de setores das forças armadas e das polícias civis e militares pode levar a formação de uma milícia pró-golpe de Bolsonaro. Descomplicando, o que é de fundo são todas as pautas feministas, antirracistas, indígenas, gays etc., mesmo porque boa parte da população não se identifica com essas reivindicações e é necessário nos unirmos naquilo que nos é comum. O aumento do preço dos alimentos nos supermercados, a morte de parentes e amigos pela covid-19, a estagnação econômica, o desemprego e a ameça de perdermos nossa liberdade democrática.

Precisamos compreender que todas as pautas civilizatórias são ameaçadas por Bolsonaro e que se ao olharmos para o lado pensando em não agredir esteticamente quem pensa diferente todos tem a ganhar. O que nos une é a necessidade premente de nos livrarmos de Bolsonaro e as demais lutas hão de revigorar-se na sociedade.

João Lago

domingo, 13 de junho de 2021

A menstruação da baleia e a coloração do mar vermelho


Perguntar-se qual a relevância da menstruação da baleia na coloração do mar vermelho é uma alegoria que ensina porque nem tudo que parece ter correlação positiva com um fenômeno pode ser considerado como algo que o explique. Lembrei-me dessa obviedade na insistência do senador Luís Carlos Heinze (PP-RS) em citar Rancho Queimado-SC como exemplo de sucesso da cloroquina como tratamento precoce. É surreal que um país com uma média de 2.000 mortos diária ainda esteja discutindo se um medicamento que não serve para covid-19 deva ser indicado para o seu tratamento. No entanto, vou dar aqui minha contribuição para elucidar a ignorância ou má-fé do senador Heinze.

Rancho Queimado é uma cidade de 2.748 habitantes que possui 59,6% vivendo na área rural, conforme informação disponível no portal da prefeitura na internet. Excluindo os que vivem no campo, sobram 1.110 almas residindo na área urbana. Somente o bairro de Educandos em Manaus, com 15.857 habitantes, acomodaria quatorze Ranchos Queimados, demonstrando o quanto deve ser espaçoso e pacto o município catarinense. Até o momento o covid-19 ceifou duas vidas em Rancho Queimado, correspondendo 1,80% de sua população. Somente para comparação, Manaus com uma população de 2,02 milhões de habitantes, que já passou por duas ondas de infecção e falta de oxigênio nos hospitais, contabilizava 9.025 óbitos até o dia 6 de junho. O número de mortes em Manaus corresponde a 0,44% da população total urbana, proporcionalmente três vezes menor que Rancho Queimado e, podendo supor, com suas duas mortes ser mais letal e perigoso morar no município catarinense que na capital do Amazonas? A resposta é não, porque simplesmente comparar uma cidade com pequena população e baixa densidade populacional com qualquer metrópole densamente povoada não contém honestidade intelectual. Devemos ainda considerar outros fatores como: quantidade da população já exposta ao vírus, taxa de circulação de indivíduos e a taxa de adesão a medidas não farmacológicas como distanciamento social, asseio das mãos e uso de máscaras para minimamente criar uma base de comparação.

É importante que se diga que existe diferença entre taxa de mortalidade e taxa de letalidade. No exemplo apresentado entre Rancho Queimado e Manaus refere-se a taxa de mortalidade, mas o correto é calcular a taxa de letalidade, ou seja, a quantidade de mortes em relação ao total de indivíduos que testaram positivo para covid-19. Porém, como é sabido que o governo brasileiro não disponibilizou testes de covid-19 para aplicar em toda sua população, é certo que existe uma subnotificação de casos em indivíduos que tiveram sintomas leves e que não procuraram atendimento médico. Rancho queimado com 2 mortes e 429 casos confirmados têm uma taxa de letalidade de 0,46% e Manaus com 9.025 óbitos e 179.186 casos confirmados apresenta letalidade de 5,03%.

Provavelmente Rancho Queimado, com sua pequena população, com a vacinação e a exposição da população ao vírus, não alcance a taxa de letalidade de Manaus, mas absolutamente isso não tem nenhuma correlação com o fato da prefeitura ter disponibilizado cloroquina para sua população. Assim com o sangue da menstruação da baleia não é a causa da coloração do mar vermelho, a cloroquina não é responsável por salvar vidas em Rancho Queimado ou em qualquer outro município brasileiro. Quem afirma ao contrário não é honesto intelectualmente e tenta justificar o injustificável.

João Lago.

domingo, 6 de junho de 2021

O Brasil na borda da Terra Plana


Pessoalmente considero a ciência como um imenso quebra-cabeça de peças embaralhadas pelo avesso em cima de uma mesa. Demora-se no início para conseguir juntar as primeiras peças, pois às vezes pegamos algumas que parecem encaixar, mas que ao final não cabem. No entanto, a partir do momento que mais peças vão sendo encaixadas o trabalho acaba por se tornar menos fatigante. Para ilustrar este meu pensamento, lembro da citação atribuída a Isaac Newton que diz: “Se cheguei até aqui foi porque me apoiei no ombro de gigantes”. O pai da física moderna referia-se a Nicolau Copérnico, Johannes Kepler, Galileu Galilei, Giordano Bruno dentre outros que contribuíram para o nosso entendimento do que é o Universo. Depois de Isaac Newton vieram Albert Einsten, Max Planck, Stephen Hawking que foram alguns que encaixaram novas peças nesse imenso quebra-cabeça que ainda contém muitas peças soltas.

Admirador de física teórica, um dos livros mais importantes para conhecer como ocorre o avanço da ciência está na obra Estrutura das Revoluções Científicas escrita pelo físico Thomas Kuhn. Nesse livro, Kuhn deixa de lado os conceitos de difícil compreensão para quem nada entende de física teórica e aborda a filosofia da ciência. Assim, Kuhn passa a descrever que a ciência evolui não somente no embate das ideias, mas a partir de evidências científicas que refutam um conceito anterior e com a adesão simultânea da maioria de uma comunidade acadêmica. A revolução ocorre quando a ideia subjacente esteja sumariamente desconstruída pelo novo. Um exemplo é o Geocentrismo de Ptolomeu que colocava a Terra estática, como o centro de tudo, e o universo girando ao seu redor. A teoria desenvolvida por Ptolomeu tinha uma base científica que explicava muito grosseiramente os fenômenos celeste e foi ensinada nas escolas até o século XVI. No entanto, apesar de rudimentar, desconstruir a ideia que a Terra era o centro do universo levou Giordano Bruno à fogueira e Galileu Galilei por muito pouco também não virou churrasco, ambos na Inquisição Católica. O ceticismo em aceitar que a Terra era apenas mais um dos oito planetas que giram ao redor do Sol estava baseada nas interpretações bíblicas de Eclesiastes 1:5 (o sol se levanta, o sol se põe, e se apressa a voltar ao seu lugar, de onde volta a sair) e de Salmos 93:1 (assim a terra está firme e não cambaleia) que respectivamente não afirmam que a Terra esteja no centro do universo. Pois, qualquer um pode ler qualquer trecho da Bíblia e construir sua própria interpretação, mas isso não é ciência, apenas demonstração de uma fé que pode ser e é questionada nas religiões.

O depoimento de Nise Yamaguchi, na Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI da covid-19 no senado federal, foi muito comparado com o depoimento de Luana Araújo. A primeira médica oncologista, suspeita de integrar o gabinete paralelo no Ministério da Saúde - MS e por parecer sustentar uma visão negacionista contra a vacina e em desfavor das medidas de proteção individual, como o uso de máscara e o distanciamento social. Já Luana Araújo, doutora infectologista e defensora de tudo que Yamaguchi parece negar, foi demitida do MS sem sequer tomar posse por estar mais afinada com a filosofia da ciência de Thomas Kuhn. A fim de exemplificar, Luana Araújo, respondendo ao senador negacionista Eduardo Girão (Podemos-CE) quando este apontou algumas falhas da OMS (Organização Mundial de Saúde) e da opinião de quatorze mil profissionais de saúde que apoiam o tal “tratamento precoce” (sem qualquer comprovação científica), a infectologista respondeu:

- “Se o senhor não quiser levar a OMS em consideração, é de direito, mas aí a gente vai precisar ignorar NHS (National Health Service) que é o serviço de saúde britânico, a gente vai precisar ignorar o CDC (Centers of Disease Control and Prevention)– Centro de Controle e Prevenção de Doenças (EUA), a gente vai precisar ignorar o FDA (Food and Drug Administration) que é a agência americana (estadunidense) de alimentos e drogas, o EMA (European Medicines Agency) que é a agência europeia de medicações, a IDSA (Infectious Diseases Society of America) que é a Sociedade Americana de Doenças Infecciosas, (…) porque todas essas instituições têm exatamente a mesma posição sobre o tratamento precoce. Então, com todo o respeito que devo aos meus colegas, aos quatorze mil que o senhor cita, infelizmente a gente precisa entender a ciência como uma coisa muito além das nossas limitações pessoais e eu me coloco nisso. Então, eu preciso aprender com o quê as pessoas estão dizendo e ter criticidade para entender isso”.

Luana Araújo cita organizações prestigiosas que tem sede em países que inicialmente controlaram a pandemia de covid-19 com lockdown e depois com vacinação em massa de sua população. Paradoxalmente, quando os senadores governistas querem citar países que usam cloroquina como “tratamento precoce” apontam Cuba e Venezuela como paradigma, justamente dois países que são ditaduras de esquerda. Será que esses quatorze mil profissionais de saúde são, na verdade, comunistas esquerdopatas que pregaram uma peça em Bolsonaro com o intuito de fazê-lo fracassar? Estou sendo irônico, mas considerando um governo que não tem nenhum pudor em mentir e construir realidades paralelas, não ficarei surpreso se nas redes bolsonaristas esta versão começar a fazer coro.

A semana que inicia aponta cada vez mais indícios da existência do “gabinete paralelo” que se demonstrava contra as vacinas, contra o distanciamento social, em desfavor ao uso de máscaras e francamente apoiador do contágio da população para atingir a famigerada “imunidade de rebanho”. O resultado disto são quase 500 mil vidas perdidas, muitas delas evitáveis se tivéssemos iniciado a vacinação em companhia de EUA e Reino Unido, mas para isso teríamos que ter um governo sintonizado na ciência, mas ao contrário disto está o Brasil ainda discutindo cloroquina, tratamento precoce e com um governo sentado na beira da Terra Plana.

João Lago