Powered By Blogger

domingo, 21 de julho de 2013

Sou Manauara entre urubus, porcos e candangos

Imagine você chamar um baiano, nascido em Salvador, de “salvadorense”, ou um cidadão nascido em Vitória do Espirito Santo de “vitoriense”, ou mesmo chamar um nascido na capital do Rio de Janeiro de “rio de janeirense”. Pois é, todos nós sabemos que respectivamente os nascidos nessas cidades são “soteropolitano”, “capixaba” e “carioca”.
Todos esses gentílicos podem ser chamados de “identidade cultural e étnica”, ou seja, vêm da denominação da própria origem do povo e como foram inicialmente apelidados. Por exemplo, o vocábulo soteropolitano vem da origem cristã da cidade de Salvador, primeira capital do Brasil. O grego, como língua culta cristã das primeiras publicações do evangelho de Jesus, presente na colonização portuguesa e católica do Brasil, usou para denominar o gentílico dos nascidos em Salvador por meio do termo “sotero”, que significa Salvador (o Cristo), agregado a “polis”, que designa cidade.
Já os gentílicos capixaba e carioca advêm do tupi-guarani, sendo que no primeiro é a junção de “caa”, que significa “folha”, com “pií”, que corresponde a fino e “aba”, que designa gente, pessoa, ser humano, porque os índios que habitavam aquela região faziam roçado de milho e foram assim denominados. O segundo gentílico, carioca, é a junção de “cari”, que significa branco, e “oca”, que quer dizer casa, ou seja, como foram chamados os primeiros moradores daquela região pelos índios. Veja que em todos os casos existem as riquezas de detalhes que identificam a raiz da cultura histórica e da origem étnica de cada conjunto de moradores.
Modernamente, esse apego a uma identidade cultural continua a acontecer no Brasil. Por exemplo, nos meados dos anos 50 os trabalhadores da construção civil que chegavam de outras partes do país (maioria nordestina) para a construção de Brasília foram chamados pejorativamente de “candangos”. O termo candango, segundo James Houston(1), é explicado assim: “Antes da construção de Brasília [a palavra candango] foi durante séculos uma palavra geral de depreciação. (…) A palavra tornou-se o termo geral para as pessoas do interior em oposição às do litoral e, especialmente, para os trabalhadores itinerantes pobres que o interior produziu em grande quantidade”.
No entanto, como o passar do tempo, o termo “candango” passou a denominar os pioneiros que chegaram para habitar Brasília e o termo hoje é anteposto de brasiliense. Convenhamos, chamar o que nasce em Brasília de brasiliense soa para mim como uma corruptela sem qualquer significado cultural e histórico. Prefiro candango.
Até para os torcedores de futebol, que têm uma forte identidade de pertencimento, as alcunhas que antes eram consideradas pejorativas, no final acabaram por serem assumidas pelo grupo e até viraram símbolos das torcidas, como é o caso de “urubu” para os torcedores do Flamengo e “porco” para os torcedores do Palmeiras. Logicamente, algumas denominações pejorativas ficam mais difíceis de serem assumidas, pois não vejo, por “puro preconceito”, os sãopaulinos assumindo o quadrúpede “bambi” como símbolo do tricolor paulista. Mas, a depender da mudança dos costumes ou da imposição que se tenha que aceitar tudo que é “politicamente correto”, logo poderemos presenciar uma torcida, por força em demonstrar ser “cult e descolada”, como primeira agremiação de futebol a sair do armário. Quem sabe até a Disney dispense o pagamento de royalties pelo uso de imagem.
Tudo o que descrevi acima demonstra, tirando o meu humor jocoso e politicamente incorreto, que a origem dos gentílicos que designam os povos tem uma forte origem étnica e cultural, que não é diferente para o povo que habitou por primeiro este pedaço de terra localizado à margem esquerda do rio Negro, a 20km do Encontro das Águas(2).
O gentílico “manauara” é a junção dos nomes “manaó” e “sara”, sendo que o primeiro vocábulo é o nome da tribo indígena que foi encontrada pelo colonizador branco e “sara”, ou “ara”, o sufixo em guarani que significa “indivíduo”. Por exemplo, as palavras indígenas guatasara e sainhansara, conforme Edelweiss(3), são a conjunção dos substantivos gûatá (viajar) e sainhana (ajuntar) que acrescidos do sufixo “sara” ou “ara” formam os adjetivos derivados viajante e ajuntador respectivamente. A mesma formação, repito, acontece em manauara.
Ser manauara é assumir minha identidade baré, morena e indígena, sem qualquer vergonha e preconceito. Assim, fico profundamente incomodado quando determinados textos jornalísticos, ainda mais quando publicados em jornais de minha terra, teimam em chamar o nascido em Manaus de “manauense”.
Quando isto acontece me pergunto: Será que isto é em decorrência de um neófito desavisado, que chegando aqui em minha terra e achando o termo manauara estranho, vem com esta “leseira”(4) de “manauense”? Não sei, mas gostaria de saber.
João Lago
Administrador, professor e morador do Conjunto Santos Dumont
Notas:
1. Holston, James. A cidade modernista, uma crítica de Brasília e sua utopia, São Paulo, Companhia das Letras, 1993, pág. 209-210 in Videsott, Luiza. Os candangos. Revista de Arquitetura e Urbanismo. Eesc-USP, 2008.
2. Fenômeno hidrológico de encontro das águas escuras do Rio Negro com as águas barrentas do Rios Solimões que parecem que caminham lado a lado sem se misturarem.
3. Edelweiss, Frederico. Estudo tupis e tupi-guaranis: confrontos e revisões. Rio de Janeiro: Editora Brasiliana, 1969.
4. A qualidade de quem é leso, ou estúpido no linguajar de minha terra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário