Sabemos que dentre
os organismos orgânicos complexos, eucariontes que habitam este
terceiro planeta de nosso sistema solar, mais precisamente o único
mamífero bípede que tem em suas células vinte e três pares de
cromossomos, o ser humano é o único que expressa a consciência da
sua existência. No entanto, pensar o existir de forma metódica veio
a partir de “cogito, ergo sum”, que traduzido do latim é “penso,
logo existo”, do filósofo francês René Descartes. Nesse primeiro
ensaio racional da existência pela consciência, Descartes coloca o
ser humano com um ser crítico das verdades óbvias, ou seja, nem
tudo aquilo que se pode ler, provar, ouvir ou sentir não há de ser
considerado verdadeiro sem antes passar pelo crivo da ciência. Isto
significa que podemos ser enganados por nós mesmo pela necessidade
de acreditar em algo que nos possa ser mais agradável.
Passado mais de três
séculos após a morte de Descartes, em plena era da informação,
assistimos boquiabertos tantos paradigmas, que foram construídos
pela ciência, serem desconstruídos sem qualquer base de raciocínio
lógico, método, experimentação científica e crítica, por
pessoas que negam essa premissa que nos faz diferente de qualquer
animal quadrúpede: O raciocínio crítico de nossa incapacidade de
criar conhecimento pelo simples pensamento.
A consciência nasce
a partir da aceitação de que nada que nos rodeia pode ser factual
sem que possamos compreender as variáveis que compõem determinado
fenômeno. Por exemplo, imaginemos uma tribo primitiva da Amazônia,
dessas de índios isolados que não tiveram contato com o “homem
civilizado” e que veem cruzar os céus um avião. A princípio
podem duvidar que seja uma ave, pois o senso comum diz que os
pássaros batem as asas. No entanto, um deles poderá dizer que o
ruído do motor é o gralhar daquela ave prateada e, portanto, deverá
ser mais uma criatura da natureza que habita os céus. No meio das
opiniões divididas o xamã, que é o sábio da tribo dirá: Voa como
um pássaro, gralha como um pássaro, é um pássaro. Um índio se
oferece para seguir o avião e encontrar o seu ninho e ter mais uma
evidência que seja uma ave, mas o xamã manda açoitá-lo e
prendê-lo por divergir do iluminado, o sábio da tribo.
O dono da verdade é
aquele que não aceita a divergência e nega a experimentação
científica, ou pela ignorância, ou na ânsia por uma resposta
acomoda-se com a mais óbvia. Durante dois mil anos ensinou-se nas
escolas que a vida surgia de uma forma espontânea e o exemplo disto
era uma carne exposta ao tempo que depois de alguns dias dela surgiam
vermes. Era tão fácil acreditar nisto, porque qualquer pessoa
poderia repetir o experimento e chegar a mesma conclusão, além de
tal teoria ter sido defendida por alguém nada menos que Aristóteles,
o grande xamã da Grécia Clássica. No entanto, um certo italiano
chamado Francesco Redi, em 1668, resolveu cobrir com tela a carne em
putrefação e percebeu que dali nada surgia, chegando a conclusão
que se as moscas não tivessem acesso à carne não haveria a geração
espontânea da vida. Francesco não sabia que os vermes eram larvas
das moscas, mesmo porque a microscopia usada na ciência, que poderia
identificar os ovos das moscas, ainda estava engatinhado na
Inglaterra por meio das observações de Robert Hooke. Outra verdade
que perdurou por séculos foi a teoria da terra plana, mas que hoje
volta a conquistar muitas pessoas que preferem acreditar nos que os
seus olhos podem ver, negando toda a tecnologia e as evidências mais
elementares da esfericidade da Terra, mas isso é uma outra história.
O negacionismo pode
ser placebo que tem como fórmula a ignorância, mas sempre haverá
os estelionatários que se valem do raso conhecimento alheio,
desespero ou ganância para ter sucesso financeiro. Alguns líderes
religiosos, por exemplo, atuam nesse sentido, nadando de braçadas em
uma legislação frouxa quanto ao enriquecimento de bispos, pastores
e apóstolos que vendem a prosperidade na terra a preço de ouro com
uma esperança futura de uma gleba no paraíso. Essa facilidade de
sedução foi também que permitiu que esses mesmos líderes
religiosos começassem a ter influência política, pois com um
público tão cativo e obediente logo se percebeu que além de poder
financeiro poderiam também obter poder político. Aliado a isso,
considerando a existência de uma banda oportunista e corrupta na
política brasileira, gerou a aproximação dessa da ala “religiosa”
com uma súcia de políticos na qual foi pinçado como representante
o mais abjeto, caricato, incompetente e antidemocrático político do
baixo clero que se tem notícia.
O que comprova esse
estelionato é o fato desse representante ter sido apresentado como
contra a corrupção, defensor da família e dos bons costumes. Todos
os fatos levantados até aqui pela imprensa livre já demonstraram
que Bolsonaro não é alguém a mais do mesmo antro político, mas um
sujeito que se destaca por não temer perder apoio popular enquanto
as hostes religiosas, antidemocráticas e corruptas que o sustentam
permanecerem fiéis. Nesse sentido, demonstrou-se competente em
manipular com mentiras e desinformação qualquer assunto envolvendo
pessoas ou ideias. Assim, sob essa édge, Bolsonaro aproximou-se do
Centrão, que é um grupo fisiologista da política, cujo apoio está
a venda, assim como a venda estão as mulheres das vitrines da luz
vermelha de Amsterdã. Porém, essas mulheres merecem nosso respeito
porque não enganam ninguém e muitas delas têm profunda vergonha do
que fazem, sendo o oposto dos políticos do centrão.
A racionalidade que
nos torna singular parece totalmente corrompida pelo obscurantismo
religioso e político, mas não se engane pensando que esse movimento
irracional browniano está totalmente desprovido de lógica. A razão
da manutenção da tensão e de ataques constantes a todos que não
se aliam ao governo é uma maneira de manter fiéis aqueles que
restaram do caldo bolsonarista que foi derramado com a saída de
Sérgio Moro e de tantos outros que já serviram de base de apoio. Já
a relutância em adotar a ciência médica no combate ao covid-19, a
leitura é que se a prosperidade é uma dádiva aos fiéis, a defesa
da vida por meio do distanciamento social é um entrave para a
felicidade que advém do dinheiro. Porém, não se pode mandar as
pessoas para a rua sem uma proteção, ou alento, caso venham a ficar
doentes. É justamente nesse detalhe que Bolsonaro insiste em
receitar a cloroquina, pois assim daria a certeza que a fé no líder
religioso mais a cloroquina será capaz de blindar o indivíduo de
uma morte prematura.
As verdades podem
parecer óbvias e temos a certeza que dessa carne putrefata não
brotará nada de novo, mas enquanto não cobrirmos nossa democracia
com o véu espesso da legalidade, da verdade e da ética, essas
moscas varejeiras continuarão a depositar os seus ovos e a se
reproduzirem sob a dor de uma nação que chora os seus mortos. Eu
tenho certeza que se Bolsonaro obrigar as pessoas que hoje estão
reclusas a saírem as ruas, novamente teremos uma multidão nas ruas
pedindo a sua deposição e prisão em maior número do que os
trezentos de Brasília. Estamos confinados, mas não duvide de nossa
disposição de lutar pela democracia.
João Lago
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