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terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Folia, verdade e hipocrisia.


Nesse carnaval de 2020 uma certa paróquia aqui em Manaus anunciou que realizaria em sua comunidade um baile de carnaval e muito dos fiéis aderiram a ideia sem oposição ou questionamento. Assim, pareceria muito natural que uma festa considerada pagã fosse adaptada para um c
ontexto cristão, a fim de proporcionar uma alternativa ao apelo de alegria que o carnaval parece despertar no brasileiro, principalmente entre os jovens. Sinceramente não tive notícia de quais marchinhas de carnaval poderiam estar incluídas nessa proposta evangelizadora, ou se mesmo esse carnaval seria realizado com versões musicais adaptadas dos folguedos de Momo.

A polêmica do carnaval da Mangueira, que trouxe símbolos cristãos para a avenida Sapucaí, no entanto parece ter chocado e provocado arrepio em fiéis que semanas atrás divulgaram e aplaudiram o carnaval paroquial. Ao mesmo tempo vejo certas denominações cristãs trazendo para o ambiente do templo ritmos do mundo secular, sendo motivo de uma reflexão que escrevi em julho de 2016 (O sagrado e o profano) na qual abordei essa forma moderna de sincretismo e novamente não consegui resistir em colocar o dedo nessa ferida que é a intolerância seletiva que encontra o pecado nas manifestações culturais alheias, mas que relativiza aberrações teológicas de doutrinas que satanizam o diferente sem olhar para o seu próprio umbigo.

A cerca de duas semanas atrás comprei em uma livraria uma coletânea dos sermões do padre Antônio Vieira que em sua época incomodava pela crítica dura que fazia a sociedade, mas não encontravam em suas palavras, por mais que procurassem, qualquer traço de afastamento do que ensina o Evangelho de Cristo. Em seu conhecido sermão Santo Antônio (sermão dos peixes), no qual criticava o colono português que escravizava os índios, assim escreveu: “Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção?”

O sermão aos peixes de padre Vieira ainda não caducou, pois parece que tanto a corrupção quanto a hipocrisia transcendem os séculos e apenas os desvalidos mudam de face, pois se outrora no século XVII eram os índios os marginalizados, hoje os excluídos da sociedade em sua maioria são negros e pardos que habitam as favelas e periferias das grandes cidades. É justamente sob essa ótica que analiso a letra do samba enredo da Mangueira e não encontro nela, assim como não se encontra nos sermões de padre Vieira, qualquer afastamento aos ensinamentos e exemplos que Cristo nos deu de como devemos deitar nossa compaixão aos marginalizados da sociedade. Desta forma, as vozes que salgam ainda são as mesmas vestidas da corrupção de três séculos passados, pois não há como abjurar a crítica social que a Mangueira colocou na avenida.

Uma escola de samba talvez não seja a melhor mensageira das coisas do Altíssimo, pois no seio do carnaval ocorre formas de alegria que são contrárias a doutrina cristã, da mesma forma que não será no âmbito do templo que o carnaval há de santificar-se. No entanto, entre as duas propostas evangelizadoras que possam parecer tortas, quem sabe a Mangueira, por fim, tenha conseguido proporcionar uma melhor reflexão do que de fato é verdadeiramente cristão: o amor e a compaixão pelos marginalizados.

João Lago.

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