Nesse carnaval de
2020 uma certa paróquia aqui em Manaus anunciou que realizaria em
sua comunidade um baile de carnaval e muito dos fiéis aderiram a
ideia sem oposição ou questionamento. Assim, pareceria muito
natural que uma festa considerada pagã fosse adaptada para um
c
ontexto cristão, a fim de proporcionar uma alternativa ao apelo de
alegria que o carnaval parece despertar no brasileiro, principalmente
entre os jovens. Sinceramente não tive notícia de quais marchinhas
de carnaval poderiam estar incluídas nessa proposta evangelizadora,
ou se mesmo esse carnaval seria realizado com versões musicais
adaptadas dos folguedos de Momo.
A polêmica do
carnaval da Mangueira, que trouxe símbolos cristãos para a avenida
Sapucaí, no entanto parece ter chocado e provocado arrepio em fiéis
que semanas atrás divulgaram e aplaudiram o carnaval paroquial. Ao
mesmo tempo vejo certas denominações cristãs trazendo para o
ambiente do templo ritmos do mundo secular, sendo motivo de uma
reflexão que escrevi em julho de 2016 (O sagrado e o profano) na
qual abordei essa forma moderna de sincretismo e novamente não
consegui resistir em colocar o dedo nessa ferida que é a
intolerância seletiva que encontra o pecado nas manifestações
culturais alheias, mas que relativiza aberrações teológicas de
doutrinas que satanizam o diferente sem olhar para o seu próprio
umbigo.
A cerca de duas
semanas atrás comprei em uma livraria uma coletânea dos sermões do
padre Antônio Vieira que em sua época incomodava pela crítica dura
que fazia a sociedade, mas não encontravam em suas palavras, por
mais que procurassem, qualquer traço de afastamento do que ensina o
Evangelho de Cristo. Em seu conhecido sermão Santo Antônio (sermão
dos peixes), no qual criticava o colono português que escravizava os
índios, assim escreveu: “Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando
com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra,
porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é
impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como
está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual
será, ou qual pode ser a causa desta corrupção?”
O sermão aos peixes
de padre Vieira ainda não caducou, pois parece que tanto a corrupção
quanto a hipocrisia transcendem os séculos e apenas os desvalidos
mudam de face, pois se outrora no século XVII eram os índios os
marginalizados, hoje os excluídos da sociedade em sua maioria são
negros e pardos que habitam as favelas e periferias das grandes
cidades. É justamente sob essa ótica que analiso a letra do samba
enredo da Mangueira e não encontro nela, assim como não se encontra
nos sermões de padre Vieira, qualquer afastamento aos ensinamentos e
exemplos que Cristo nos deu de como devemos deitar nossa compaixão
aos marginalizados da sociedade. Desta forma, as vozes que salgam
ainda são as mesmas vestidas da corrupção de três séculos
passados, pois não há como abjurar a crítica social que a
Mangueira colocou na avenida.
Uma escola de samba
talvez não seja a melhor mensageira das coisas do Altíssimo, pois
no seio do carnaval ocorre formas de alegria que são contrárias a
doutrina cristã, da mesma forma que não será no âmbito do templo
que o carnaval há de santificar-se. No entanto, entre as duas
propostas evangelizadoras que possam parecer tortas, quem sabe a
Mangueira, por fim, tenha conseguido proporcionar uma melhor reflexão
do que de fato é verdadeiramente cristão: o amor e a compaixão
pelos marginalizados.
João Lago.
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