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sábado, 26 de dezembro de 2015

Setenta vezes sete.



Nesse final de ano os católicos tomaram conhecimento que o ano vindouro foi proclamado pelo Papa Francisco como o “Ano Santo da Misericórdia”. Já nas celebrações das igrejas católicas ao redor do mundo no dia de Natal (25/12) muitos fiéis ouviram por meio de seus párocos o reforço do significado do que seja “misericórdia” e o que se espera das atitudes de um cristão que estejam em sintonia com esse chamado feito pelo sumo pontífice. Disse Francisco: “A misericórdia será maior que qualquer pecado e ninguém pode colocar um limite ao amor de Deus que perdoa”. No Evangelho de São Mateus (18, 21-22) Pedro pergunta a Jesus se deveríamos perdoar nossos irmãos até sete vezes, ao que Cristo respondeu: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete”.

O perdão está na essência do ser cristão, mas no mesmo capítulo de São Mateus (18, 9), Cristo  esclarece que o perdão não é dado sem o compromisso do desejo de viver uma vida nova e deixar para trás o pecado. Cristo deixou isto bem claro quando ensinou: “Se teu olho te leva ao pecado, arranca-o e lança-o longe de ti: é melhor para ti entrares na vida cego de um olho que seres jogado com teus dois olhos no fogo da geena”. Então, atrelado à disposição de receber perdão, deve haver o compromisso de deixar o pecado para trás. No entanto, muitas vezes alguém pode usar a expressão: “eu posso dar o perdão, mas eu não esqueço”. Ora, se perdoou e não esqueceu é certo que não deu o seu perdão, ao mesmo tempo em que aquele que pediu perdão e não deixou o pecado para trás também não honrou o compromisso assumido para obter a graça de Deus.

A etimologia da palavra misericórdia, que deriva do latim, significa miseris (compaixão), cor (coração) e dare (dar), ou seja, conceder compaixão com o coração, ou ser amplamente sincero ao dar o seu perdão ou um misericordioso verdadeiro. Não existe meio termo para o perdão, ou ser misericordioso pela metade face ao apelo de quem precisa receber misericórdia. Perdoar é também esquecer. Porém, vejo tanta gente envolvida com suas próprias necessidades e desejos, tão indiferente ao sofrimento alheio que é incapaz de um gesto misericordioso, que seja ser solidário, pois perdoar e esquecer é buscar em si a origem do amor de Cristo que pode levar o outro a desejar uma vida nova e sem pecado.

Amizades e amores são perdidos pela falta de misericórdia, pois às vezes é imponderável ver gente unida em passado recente tão envolvida em companheirismo e cumplicidade (ou paixão) e agora serem pessoas totalmente indiferentes ao outro simplesmente pela incapacidade de conceder um perdão verdadeiro.

Existe uma estória muita antiga árabe que li certa vez quando era adolescente que é mais ou menos assim: Dois amigos andavam pelo deserto e em um dado momento da caminhada eles tiveram uma discussão, e um amigo esbofeteou o outro na face. Aquele que levou a bofetada ficou machucado, mas sem revidar foi escrever na areia: “hoje o meu amigo me bateu no rosto”. Os dois amigos continuaram andando lado a lado até que encontraram um oásis com um lago, no qual decidiram nadar. O amigo que levou a bofetada teve câimbras e começou a se afogar, mas o outro amigo entrou na água e o salvou. Depois de recuperado do susto, ele saiu e escreveu em uma pedra: “hoje o meu amigo salvou-me a vida”. O outro amigo, que havia lido a mensagem anterior, ao ler essa nova mensagem resolveu perguntar: "por que depois que eu te bati na face tu escreveste na areia e agora, quando te salvo de afogar-te, tu escreves na pedra, por quê?".
O outro amigo respondeu: "quando alguém nos machuca, nós devemos escrever na areia, onde a chuva e os ventos da misericórdia poderão apagar. Porém, quando alguém nos faz algo de bom, devemos gravar isto na pedra, onde nenhuma chuva ou vento jamais apagarão".

Quando estamos magoados e feridos somos incapazes de lembrar as coisas boas havidas no passado, pois somente enxergamos os defeitos, as faltas e os pecados do outro. Não existe futuro para aquele que nos magoa, somente existe o passado que grita e que escreve na pedra todas as faltas ocorridas. Não existe perdão se as faltas não são expostas à chuva e ao vento para que sejam apagadas pelo tempo.

Que neste final de ano as mágoas possam ser deixadas e esquecidas na areia da praia e que a lembrança do amor seja escrita na pedra.

Feliz ano novo.

João Lago.
Administrador, professor e morador do Conjunto Santos Dumont.

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