Gostaria de iniciar esta resenha com
a seguinte reflexão: Em uma escola qualquer, certo jovenzinho arranca risos
colocando apelidos (pintor de rodapé, rolha de poço, vesgo etc.) em certos
colegas e ridiculariza comportamentos que não sejam compatíveis com aqueles que
norteiam sua conveniência. Nas portas do banheiro da escola, solitário difama
professores e funcionários por meio de sua arte irreverente que também faz rir
somente aqueles que não são os alvos de seus ataques. Se esse jovenzinho for
descoberto e encaminhado para o serviço psicopedagógico da escola, muito
provavelmente o psicólogo poderia classificar a atitude do moleque como um
exacerbado desejo de chamar atenção e convocaria os pais para discutir o
comportamento do menino. Por outro lado, partindo de um ponto de vista
puramente pedagógico, um educador frente a um quadro deste que atitude tomaria?
Trataria o caso como falta de educação e transgressão de princípios éticos e de
moral e puniria, ou o apoiaria por acreditar que o aluno, mesmo precocemente,
apenas expressa sua liberdade de expressão? Qual o limite que define a
liberdade e o abuso deste direito?
O mundo ocidental mostra-se
novamente boquiaberto com o terrorismo islâmico em solo democrático, no qual a
liberdade de expressão e a imprensa livre são conquistas da sociedade,
normalmente expressa na carta magna da nação. A França, no preâmbulo de sua
constituição federal de 1958, estabelece o direito à liberdade de expressão ao
reconhecer a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, época da
revolução francesa, que no seu artigo 11 diz: “A livre expressão de pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais
preciosos de um homem: todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir
livremente, salvaguardo a responder dos abusos desta liberdade nos casos
previstos em lei” (em minha livre tradução).
Cumpre dizer que a Declaração dos
Direitos do Homem, peça do iluminismo francês, inspirou diversas constituições
de países no direito a liberdade de expressão, inclusive a brasileira, mas leis
ordinárias e complementares (ou infraconstitucionais) acabam por disciplinar o
abuso que possam derivar no exercício deste direito. Por exemplo, a injúria, a
calúnia e difamação no Brasil estão tipificadas no código penal (artigos 139 a
140) e tem como princípio salvaguardar a honra das pessoas. E o respeito à
honra é muito anterior ao iluminismo francês, tanto que o dramaturgo William
Shakespeare no Século XVI escreveu a seguinte pérola: “quem da minha bolsa rouba tira ninharia, mas quem do nome honrado
espolia-me, priva-me de algo que não o enriquece, mas que me deixa paupérrimo”.
Otelo, o mouro de Veneza, enganado por Iago lava sua honra com sangue ao matar
sua mulher Desdêmona. Destarte, até 1984 o código penal brasileiro dava motivos
para absolver Otelo com a tese da “legítima defensa da honra” que tinha guarida
em seu artigo 27, pois no caso de indivíduos “se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência
no ato de cometer o crime” poderiam ser inocentados. As modificações
havidas no código penal atualmente não exclui a imputabilidade penal motivada
pela emoção e paixão (artigo 28).
Em 2009, por decisão do Supremo
Tribunal Federal – STF, no Brasil foi proscrita a chamada Lei de Imprensa que
sobreviveu ao fim da ditadura militar e era bastante utilizada até então para
processar e punir empresas de comunicação e jornalistas. Assim, na falta de uma
legislação específica, os juízes para decidir sobre ações criminais e de
indenização contra jornalistas tem somente a Constituição Federal e os códigos
Penal e Civil. No entanto, tanto a liberdade de expressão, quanto a imprensa
livre, em muito incomoda governos déspotas e corruptos, pois são esses os
mecanismos democráticos de reação de uma sociedade livre. Quando a imprensa e a
opinião de cidadão ordinário incomodam, vê-se emergir tentativas açodadas de
cerceamento de liberdade por meio de regulamentação da imprensa e, mais
modernamente, das mídias sociais na internet. O ministro das Comunicações
Ricardo Berzoini, nomeado por Dilma para iniciar seu segundo mandato, é
reconhecidamente identificado como defensor da censura aos meios de
comunicação, logicamente quando são escancaradas as críticas e as denúncias aos
membros de seu partido, o PT, e aliados, mas não vamos perder tempo com este
assunto (por enquanto).
Periódicos como New York Times
(EUA), Le Figaro (França), La Repubblica (Itália), El País (Espanha) não
publicam charges na primeira página, mas existem jornais que usam o recurso
para chamar atenção, como o francês Le Monde e o brasileiro O Globo dentre
outros. No caso do Charlie Hebdo a charge é a própria primeira página, que
exposta nas bancas para que qualquer transeunte a veja está a cumprir o papel
de chocar e criar polêmica. Seria como o jovenzinho rebelde citado logo no
início que age assim para chamar atenção para si. Assim, sua crítica ácida é
construída para ofender crenças e valores preciosos para muitos e não permite
que o não leitor, que caminha na rua, tenha opção de ignorar a sua existência. Agora,
com esse bárbaro atentado, todo o escárnio do Charlie Hebdo pelas crenças e
valores foi exposto em âmbito global e o seu bullying moral elevado à categoria máxima de “liberdade de
expressão”. No entanto, eu tenho a mais profunda convicção que os cartunistas
mortos do Charlie Hebdo deveriam continuar como estavam, ou seja, vivos e cumprindo
o seu papel de ofender para criar polêmica e vender jornal, mas
fundamentalistas estúpidos resolveram lavar sua irracionalidade com sangue,
cumprindo o seu papel de gerar mais ódio e mais intolerância.
A revolução francesa trouxe para
o mundo o lema “liberdade, igualdade e fraternidade”. Em um mundo racional e de
direitos igualitários não se admite que a paixão seja motivo para matar. Em
nações democráticas é necessário permitir que qualquer um tenha liberdade de
expressar sua opinião. Em uma sociedade que busca a paz é necessária a
tolerância e o respeito, que são duas condições essenciais para que se viva a
fraternidade.
Je ne suis pas Charlie, mais je regrette toute le forme de violence. Ce
qui manque dans le monde c'est la fraternité et surtout le respect et la
tolérance entre les hommes.
João Lago.
Administrador, professor e morador do Conjunto Santos Dumont.
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