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sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Je ne suis pas Charlie (eu não sou Charlie).

Gostaria de iniciar esta resenha com a seguinte reflexão: Em uma escola qualquer, certo jovenzinho arranca risos colocando apelidos (pintor de rodapé, rolha de poço, vesgo etc.) em certos colegas e ridiculariza comportamentos que não sejam compatíveis com aqueles que norteiam sua conveniência. Nas portas do banheiro da escola, solitário difama professores e funcionários por meio de sua arte irreverente que também faz rir somente aqueles que não são os alvos de seus ataques. Se esse jovenzinho for descoberto e encaminhado para o serviço psicopedagógico da escola, muito provavelmente o psicólogo poderia classificar a atitude do moleque como um exacerbado desejo de chamar atenção e convocaria os pais para discutir o comportamento do menino. Por outro lado, partindo de um ponto de vista puramente pedagógico, um educador frente a um quadro deste que atitude tomaria? Trataria o caso como falta de educação e transgressão de princípios éticos e de moral e puniria, ou o apoiaria por acreditar que o aluno, mesmo precocemente, apenas expressa sua liberdade de expressão? Qual o limite que define a liberdade e o abuso deste direito?

O mundo ocidental mostra-se novamente boquiaberto com o terrorismo islâmico em solo democrático, no qual a liberdade de expressão e a imprensa livre são conquistas da sociedade, normalmente expressa na carta magna da nação. A França, no preâmbulo de sua constituição federal de 1958, estabelece o direito à liberdade de expressão ao reconhecer a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, época da revolução francesa, que no seu artigo 11 diz: “A livre expressão de pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais preciosos de um homem: todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, salvaguardo a responder dos abusos desta liberdade nos casos previstos em lei” (em minha livre tradução).

Cumpre dizer que a Declaração dos Direitos do Homem, peça do iluminismo francês, inspirou diversas constituições de países no direito a liberdade de expressão, inclusive a brasileira, mas leis ordinárias e complementares (ou infraconstitucionais) acabam por disciplinar o abuso que possam derivar no exercício deste direito. Por exemplo, a injúria, a calúnia e difamação no Brasil estão tipificadas no código penal (artigos 139 a 140) e tem como princípio salvaguardar a honra das pessoas. E o respeito à honra é muito anterior ao iluminismo francês, tanto que o dramaturgo William Shakespeare no Século XVI escreveu a seguinte pérola: “quem da minha bolsa rouba tira ninharia, mas quem do nome honrado espolia-me, priva-me de algo que não o enriquece, mas que me deixa paupérrimo”. Otelo, o mouro de Veneza, enganado por Iago lava sua honra com sangue ao matar sua mulher Desdêmona. Destarte, até 1984 o código penal brasileiro dava motivos para absolver Otelo com a tese da “legítima defensa da honra” que tinha guarida em seu artigo 27, pois no caso de indivíduos “se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime” poderiam ser inocentados. As modificações havidas no código penal atualmente não exclui a imputabilidade penal motivada pela emoção e paixão (artigo 28).

Em 2009, por decisão do Supremo Tribunal Federal – STF, no Brasil foi proscrita a chamada Lei de Imprensa que sobreviveu ao fim da ditadura militar e era bastante utilizada até então para processar e punir empresas de comunicação e jornalistas. Assim, na falta de uma legislação específica, os juízes para decidir sobre ações criminais e de indenização contra jornalistas tem somente a Constituição Federal e os códigos Penal e Civil. No entanto, tanto a liberdade de expressão, quanto a imprensa livre, em muito incomoda governos déspotas e corruptos, pois são esses os mecanismos democráticos de reação de uma sociedade livre. Quando a imprensa e a opinião de cidadão ordinário incomodam, vê-se emergir tentativas açodadas de cerceamento de liberdade por meio de regulamentação da imprensa e, mais modernamente, das mídias sociais na internet. O ministro das Comunicações Ricardo Berzoini, nomeado por Dilma para iniciar seu segundo mandato, é reconhecidamente identificado como defensor da censura aos meios de comunicação, logicamente quando são escancaradas as críticas e as denúncias aos membros de seu partido, o PT, e aliados, mas não vamos perder tempo com este assunto (por enquanto).

Periódicos como New York Times (EUA), Le Figaro (França), La Repubblica (Itália), El País (Espanha) não publicam charges na primeira página, mas existem jornais que usam o recurso para chamar atenção, como o francês Le Monde e o brasileiro O Globo dentre outros. No caso do Charlie Hebdo a charge é a própria primeira página, que exposta nas bancas para que qualquer transeunte a veja está a cumprir o papel de chocar e criar polêmica. Seria como o jovenzinho rebelde citado logo no início que age assim para chamar atenção para si. Assim, sua crítica ácida é construída para ofender crenças e valores preciosos para muitos e não permite que o não leitor, que caminha na rua, tenha opção de ignorar a sua existência. Agora, com esse bárbaro atentado, todo o escárnio do Charlie Hebdo pelas crenças e valores foi exposto em âmbito global e o seu bullying moral elevado à categoria máxima de “liberdade de expressão”. No entanto, eu tenho a mais profunda convicção que os cartunistas mortos do Charlie Hebdo deveriam continuar como estavam, ou seja, vivos e cumprindo o seu papel de ofender para criar polêmica e vender jornal, mas fundamentalistas estúpidos resolveram lavar sua irracionalidade com sangue, cumprindo o seu papel de gerar mais ódio e mais intolerância.

A revolução francesa trouxe para o mundo o lema “liberdade, igualdade e fraternidade”. Em um mundo racional e de direitos igualitários não se admite que a paixão seja motivo para matar. Em nações democráticas é necessário permitir que qualquer um tenha liberdade de expressar sua opinião. Em uma sociedade que busca a paz é necessária a tolerância e o respeito, que são duas condições essenciais para que se viva a fraternidade.

Je ne suis pas Charlie, mais je regrette toute le forme de violence. Ce qui manque dans le monde c'est la fraternité et surtout le respect et la tolérance entre les hommes.


João Lago.
Administrador, professor e morador do Conjunto Santos Dumont.

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