Os liristas literários romantizam que ler um livro é como viajar sem absolutamente mover-se do lugar. Realmente, como a leitura é isenta da dramaticidade teatral, trilhas sonoras e cenários, fica ao encargo exclusivo do leitor criar em sua mente a atmosfera que mais lhe convém para interpretar o que está a ser narrado pelo autor. Assim, sendo portanto a interpretação literária livre de uma hermenêutica fechada, seria possível uma banca determinar o que é correto nas palavras lidas pelo leitor?
Início esta resenha com esta provocação para analisar a questão de número 29 da prova do Enem 2024 de 3 de novembro, na qual aborda um texto do escritor Julian Fuks retirado do seu livro A Resistência. Nela, o autor confrontado com o problema, conforme publicado na coluna de opinião da página ECOA do portal da UOL, afirma que errou a questão. Não se trata de algo inédito, algo parecido já havia ocorrido no Enem de 2023 quando Caetano Veloso, confrontado com uma questão que abordava uma de suas canções, não somente disse que todas as alternativas pareciam corretas, mas quando incitado a escolher uma, errou a resposta.
Eu, assim com Julian Fuks, errei a questão 29, escolhendo provavelmente a resposta que descreve com mais simplicidade a emoção humana. Neste caso, marquei a letra D que diz “ao conflito entre o termo técnico e o vínculo afetivo” justamente porque nem sempre o que é definido “em termos técnicos” alcançam a subjetividade do sentimento humano, inclusive o da interpretação de cada um dos 1,6 milhão de inscritos no Enem de 2024. A banca resolveu que a resposta assertiva deveria ser aquela carregada de “termos técnicos”, como “representações sociais”, “parentalidade” e “estigmatização”. Não que este autor, em sua humildade acadêmica, desconheça o significado de cada termo utilizado na resposta considerada como correta (letra A), mas justamente por entender que emoldurar sentimentos com termos concretos não os tornam verdadeiros. A mentira é muitas vezes escamoteada por sofistas modernos justamente com argumentações recheadas de “termos técnicos”.
Acredito que todo o professor quando elabora uma questão, principalmente aqueles dedicados as ciências humanas e da linguagem, tem como refúgio seguro a referência bibliográfica, a construção da consolidação da ciência a partir da contribuição de diversos autores e, por fim, sua própria exposição dos temas contidos nos planos de aulas e de ensino. Afortunadamente para uns e nem tanto para outros, os inscritos no Enem não tiveram durante sua vida acadêmica a mesma exposição uniforme, emplastrada pelas mesmas letras que ilustraram os professores que formulam essas questões, sejam aqueles estudantes da planície amazônica, dos nativos do cerrado e da caatinga, das montanhas da Serra da Mantiqueira, ou dos pampas gaúchos. A banca do Enem, a trazer textos de autores contemporâneos e ainda viventes, correm o risco de repetirem esta vergonha alheia: serem confrontados acerca de sua interpretação do texto tão distante daquela dos próprios autores. Arrisco até mesmo dizer que, se ainda fosse vivo, talvez Olavo Bilac não se sentisse tão à vontade de ser classificado como parnasianista em vez de romântico, ou talvez Machado de Assis achasse ridícula a discussão acadêmica se Bentinho tivesse sido “chifrado” ou não por Capitu, mas convenhamos essas controvérsias surgem exclusivamente da livre interpretação do leitor.
Finalizando, em meio a tantos egos expostos estão os anseios de milhares de jovens que almejam cursar uma universidade pública, tão simplesmente ancorada em seus próprios méritos e não pela vaidade acadêmica alheia que busca definir quais as colorações corretas que estão contidas na subjetividade literária de um texto. Quem sabe um dia aprendam, quem sabe um dia se tornem autores.
João Lago.
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