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domingo, 18 de dezembro de 2022

Ostracismo, vaidade e o medo da morte


O poeta francês Stanislas de Boufflers, em um elogio ao escritor Jean-Jacques Barthélemy, proferido na Academia Francesa em 13 de agosto de 1806, disse que o esquecimento é uma segunda morte e que as grandes almas a temem mais que a primeira. Nesse mesmo texto o poeta cita que quando lemos as obras de grandes mestres os retiramos da Léthé (esquecimento em grego antigo) e é exatamente o que faço neste instante com Boufflers e Barthélemy. Vislumbrando o conteúdo filosófico que abraça essa citação, ao despertar ambos do esquecimento para ilustrar esta breve reflexão, o tempo demonstra ser o algoz das vaidades muito mais que a própria morte.

Vem da democracia ateniense e das discussões de seus pares em assembleia a origem da palavra política, cuja etimologia é construída da junção de pólis (cidade) e tiikós (bem comum). Assim, na Grécia Clássica os cidadãos de Atenas, reunidos em praça pública (chamada Ágora), debatiam, votavam temas da vida em comum e deliberavam quem teria o seu nome anotado em um pequeno pedaço de cerâmica chamado ostraka. Porém, isso não se tratava de uma homenagem mas uma punição. Aqueles considerados como uma ameça a democracia eram exilados e condenados ao ostracismo, ou seja, ao esquecimento por dez anos. Modernamente essa punição poderia ser considerada branda, mas em uma época que a expectativa de vida não ia muito além dos trinta e cinco anos, ser banido por uma década significava um desterro até uma provável morte.

A Population Reference Bureau (PRB), que é uma instituição privada estadunidense que realiza pesquisas demográficas para organismos multilaterais e governos, estimou que desde o surgimento do homo sapiens já viveram sobre a Terra cerca de 108 bilhões de pessoas. No entanto, somente uma fração de homens e mulheres segue sendo lembrada por sua notoriedade (ou desgraça) na política, religião, artes e ciências, enquanto uma multidão nem mesmo consegue resistir ao passar do tempo com o seu nome escrito em uma lápide. Muito raro, uma minoria afortunada consegue ser conhecida por seus bisnetos e seguem na memória até sua terceira geração, mas com a tendência das mulheres adiarem para depois dos trinta anos a maternidade, pode ser comum que muitos sequer sejam conhecidos pelos seus netos. Todavia, não pense que aquela personalidade de uma época possa continuar sendo verdadeiramente lembrada nas gerações futuras, mesmo que tenha o seu nome denominando vias e prédios públicos. Andemos pelas ruas, praças e avenidas de nossa cidade e muitos dos nomes estampados nelas são apenas localizações geográficas, não remetendo a lembrança do indivíduo que a batizou. Nem mesmo esses escapam do esquecimento e seus nomes não são muitos diferentes daqueles que ornam sepulturas de quem nada sabemos.

São Jerônimo, considerado doutor da Igreja Católica, traduziu a Bíblia Sagrada para o latim a partir do grego e do hebraico, finalizando seu trabalho no início do século V, sendo essa tradução conhecida como “vulgata”. É dessa obra que se retira a citação Vanitas vanitatum, et omnia vanitas (do Livro de Eclesiastes 1:2), tantas vezes repetida como advertência ao pecado da soberba, cuja frase em latim pode ser traduzida como “vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. Assim, frente a inexorável certeza da morte, alguns buscaram uma notoriedade efêmera e descolada de grandes feitos justamente por meio da religião, instituição que não é apropriada para nutrir vaidades. É o que expôs o historiador Jorge Victor de Araújo Souza ao pesquisar os principais doadores ao mosteiro beneditino do Rio de Janeiro e São Paulo entre os séculos XVI e XVIII. Souza evidenciou que doações à igreja tinha como uma das reciprocidades a lembrança do nome do doador durante a missa. O pesquisador exemplificou com um caso de uma doadora chamada Vitória de Sá que tinha o seu nome diariamente lembrado nas celebrações litúrgicas do mosteiro mesmo sessenta e seis anos depois de sua doação.

Inevitavelmente somente uma pequena parcela de homens e mulheres serão lembrados no decurso da humanidade e os demais fadados ao ostracismo. Porém, se o medo do esquecimento pode apavorar-lhe muito mais que a certeza da morte é porque talvez sua vida não está sendo construída para deixar saudades naqueles que o cercam. Saiba que mesmo aqueles que entram no panteão da história também experimentam o exílio até que sejam resgatados em um livro, em uma pintura no museu, em um documentário ou noticiário, mas certamente nenhum deles experimentará naquele exato momento a ternura da saudade verdadeira de um amigo, esposa, marido, filho, sobrinho, neto ou bisneto. Não sou de dar conselhos, não tenho vocação para guru de autoajuda e nutro certa ojeriza da palavra coaching, mas finalizo dizendo: Viva amorosamente entre os seus, pois a retribuição do amor e do carinho será possivelmente aquela gostosa nostalgia que aquece, embala, faz rir e conforta o coração.

João Lago 



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