Quem
já criou filhos, com a preocupação devotada para o bem-estar, sabe
que fazê-los gostar de salada ao invés do pastel frito é uma
tarefa árdua. Principalmente quando os pais têm costumes
alimentares nada saudáveis e que em nada contribuem como exemplo
para os pequenos. Neste ponto, o dilema será entre a mudança de
vida, ou a velha imposição do “faça o que eu digo, mas não faça
o que eu faço”. A hipocrisia é o caminho fácil desde que bem
escamoteada nas profundezas da intimidade familiar, mas com tanta
exposição do que se faz hoje na vida pouco sobra para ficar no
subterrâneo. Essa corda bamba que muitos se equilibram entre o
público e o privado, do que deve ser visto e o que restará
escondido, esbarra na necessidade de sermos reconhecidos, admirados,
“curtidos” e aceitos.
Um
mundo tão interconectado como o que vivemos, principalmente com
tantas ferramentas de mídia à disposição como facebook, youtube,
whatsapp, instragram, twitter e, mais recentemente, tik tok (dentro
outros semelhantes) favoreceu a comunicação de personalidades com o
seu público, ao mesmo tempo que proporcionou o surgimento de
inúmeras celebridades instantâneas. Artistas de TV, cantores,
esportistas, músicos, poetas, atores, jornalistas, todos que se
consagraram na mídia tradicional de jornais, revistas, rádio e
televisão, agora dividem espaço no mundo da internet e do
smartphone com gente até
então desconhecida. No entanto, do mesmo limbo que alguns
emergem, outros famosos podem ser ali lançados a depender de como se
comunicam, ou de qual fato exposto de sua vida particular vaza para o
grande público.
Recentemente
um “famoso” DJ, autor de inúmeros hits dos
quais desconheço todos (não sou referência nessa área), foi do
auge a sarjeta quando vídeos abomináveis de espancamentos
praticados contra sua mulher foram viralizados nas
novas mídias e repercutiram
nas tradicionais. Pessoas
ignorantes a “arte” de Iverson de Souza Araújo, ou DJ Ivis
(alcunha que adotou), foram quase que obrigadas a buscar informação
sobre qual tipo de celebridade estava-se
falando. Se no passado
recente a janela do mundo era estática
na tela da TV, hoje caminha
conosco na palma de nossas mãos. É bem verdade que essas novas
mídias criaram bolhas, ou em um termo mais afeito a tecnologia,
criaram clusters de
indivíduos conectados por
interesses e administrados por algorítimos que os alimentam somente
daquilo que gostam
de consumir. É como se as
crianças, apesar das informações de alimentos saudáveis
circularem, na mesa de suas
casas
somente sejam servidas
frituras, doces e refrigerantes, porque é isso que aprenderam a
desejar, não por uma escolha racional, mas porque é o que se impôs.
Essa analogia é válida para tudo, da música erudita que deixa de
ser conhecida, da literatura que não é consumida, da
dança e do teatro que não são vistos, da
ciência por trás das coisas que não alcançam a curiosidade. Uma
sociedade na qual os
interesses são orientados por algarismos tende a ser dominada
pela Id (impulsos vindo de
desejos primitivos na psicologia freudiana) e ficará orbitando entre
o fácil
e o ordinário.
Infelizmente
muitas celebridades
estão abrindo seus subterrâneos e expondo o seu pior porque uma
grande parcela dos brasileiros acaba por se identificar com essa
podridão. Alguns fazem sem
muita cerimônia porque falam para sua bolha e dela dependem
financeiramente, mas outros, que são patrocinados por marcas cuja
ideologia pauta-se pela opinião pública, quando extrapolam o
razoável da decência voltam
atrás para pedir desculpas quando perdem contratos. Não
se arrependem verdadeiramente de sua cupidez, apenas recuam um pouco
até que novamente as circunstâncias lhes sejam mais favoráveis
para novamente sair das sombras. Não nos enganemos, existe uma
legião escondidas nas trevas prontas para agir se deixarmos
de reagir aos ataques aos
valores que nos caracterizam como nação civilizada.
É
inegável que tivemos um retrocesso imenso nas pautas civilizatórias
e recuperar o que foi perdido
nos últimos anos poderá
demorar décadas. Isto posto,
olhar para as crianças e realmente vê-las como futuro desta nação
deverá ser mais que uma simples retórica de impacto. N o entanto,
não se pode desejar que sejam somente educadas para dominar as
tecnologias tão necessárias para a nossa independência econômica,
bem como não se pode tirar a oportunidade de crianças nascidas
marginalizadas ter
acesso a mesma educação
disponível as famílias mais abastadas. O desafio da educação é o
da inclusão, mas não no sentido da imposição de uma revolução
de valores quando o básico ainda não foi suprido ao conjunto da
maioria mais pobre. Como falar para novas gerações da necessidade
de cuidar do meio ambiente, se nas favelas que habitam o lixo
acumula-se nas ruas e falta saneamento básico e água nas torneiras?
Como falar que ser honesto
é importante quando na comunidade aqueles que mais ostentam são
justamente os que estão envolvidos no tráfico de drogas e em outros
crimes? Como falar de igualdade quando a própria cor da pele já é
identificação de culpa em uma abordagem policial ou de atitude
suspeita em lojas e centros comerciais?
Uma
chaga foi aberta como um câncer que vai tomando conta de um tecido
enfraquecido e os remédios amargos mais fragilizam o paciente que o
aliviam da dor. Para todas as
mazelas descritas a solução que está na cabeça de uma maioria é
controlar com violência a
criminalidade nas favelas, aceitando como “efeito colateral” a
morte de inocentes que nada tem a ver com isso e construir um muro
bem alto que impeça gente pobre e “feia” de circular nos
shoppings e lojas frequentadas por “gente de bem”. Essa forma de
contenção já foi mais do que praticada por décadas no Brasil e é
um exercício de hipocrisia e burrice insistir neste modelo que
não deu certo, mas não por
acaso sustenta uma indústria de programas “mundo cão” que
é celeiro de políticos demagogos e corruptos. Não basta caiar a
casa, trocar a geladeira, o fogão e não mudar o entorno, pois
agindo assim nada de concreto muda na história de vida dessas
pessoas, ou quando apenas alimenta o desejo de um dia sair dali e dá
lugar a outro. Faz-se necessário levar dignidade as pessoas no lugar
onde vivem e muito poucos buscaram este modelo.
Fazer
uma criança gostar de comer verduras talvez seja fácil quando todas
puderem escolher entre brócolis ou pastel frito, mas antes disso
muita “gente de bem” continuará saindo de seus subterrâneos e
expondo sua podridão em praça pública.
João Lago.