Certa vez um colega de trabalho
nos anos 90, que depois se transformou em um grande amigo, apareceu com uma tipoia
no braço direito e tudo fazia com a mão esquerda. Perguntei-lhe o que havia acontecido
ao que me respondeu: “nada, apenas resolvi que devo ensaiar fazer tudo com a
mão esquerda, pois não sei se um dia isso poderá ser útil para alguma coisa”.
Relembrado essa excentricidade recordei
minha adolescência e o grande amor que tinha pelo meu falecido avô, que pela
ausência física de meu pai, devido à separação precoce de minha mãe, tornou-se a
referência paterna que tenho para mim. Homem íntegro, honesto e grande
admirador das letras, apesar de seu pouco estudo, sempre se valia de estar
próximo a gente mais inteligente do que ele. João Pinheiro, meu avô, tinha um
bordão repetido à exaustão: “quem não estuda, fica para puxar carroça”.
Lembro-me que vendo os cabelos grisalhos de meu avô e a saúde abalada pelos anos
de tabagismo, aos poucos ia construindo a ideia que não o teria para sempre e
isso me trazia uma profunda angústia que não compartilhava com ninguém.
Guardava esse sentimento para mim, e a cada demora sua em voltar para casa,
pois todos os dias ele saía para cumprir compromissos não declarados,
pensamentos ruins povoavam a minha mente, sendo que dia após dia sentia que o
matava inconscientemente, antevendo a sua ausência inexorável. Quando
finalmente chegou o dia tão temido de sua morte, não consegui chorar. Lembro
que via tudo com extrema passividade, como se estivesse em uma letárgica e
mórbida nostalgia de sentimentos já vividos. Para quem gosta de galicismos: um déjà vu. Porém, passados três dias,
quando senti a solidão de sua ausência não consegui segurar as lágrimas e
chorei copiosamente.
O aforismo grego “conhece a ti
mesmo”, cuja inscrição encontrava-se na entrada do templo de Delfos, construído
em honra a Apolo, o deus grego do sol, da beleza e da harmonia, tem
ramificações no pensamento socrático e nos ensinamento da Arte da Guerra de Sun
Tzu, general estrategista e filósofo chinês. Sun Tzu escreveu: “Conheces o teu
inimigo e conheces a ti mesmo, pois se tiveres que travar cem combates, cem
vezes saíra vitorioso. Se ignoras o teu inimigo e conheces a ti mesmo, tuas
chances de ganhar ou perder serão idênticas, mas se ignoras ao mesmo tempo teu
inimigo e a ti mesmo, só acumularás derrotas”. Quando Sócrates nasceu (469
a.C.) Sun Tzu tinha setenta e sete anos e embora contemporâneos, é pouco
provável (por motivos óbvios) que tenha havido troca de informações entre os
dois filósofos. Todavia, enquanto Sócrates via o mundo como um campo fértil de
conhecimentos que não se esgotam para construção de indivíduo melhor, Sun Tzu
voltava seus ensinamentos filosóficos para finalidades bélicas. Porém, ambos
mantêm o princípio da necessidade da compreensão do universo a partir do autoconhecimento,
compreendendo nossas forças e fraquezas para enfrentar o mundo.
Por mais que ensejamos nos
preparar para qualquer tipo de infortúnio, uma coisa é vivenciá-lo na teoria,
outra é viver a sua prática. Poderia ser a perda ou paralisia de um membro, o
fim de um relacionamento, ou a morte de alguém amado, mas jamais estaremos
suficientemente preparados para enfrentar a dor de um sofrimento. Contudo, quando
internamente buscamos construir anticorpos para enfrentar um mal que poderá nos
assolar, seja por meio da racionalização de nossas atitudes para passar pela
dor, ou pela busca de compensações que nos deixe menos tristes, ao invés de um
processo agudo de melancolia, certamente viveremos uma febre passageira.
Nosso maior inimigo somos nós
mesmos, que impregnado de vícios e fraquezas muitas vezes somos incapazes de
agir de forma profilática e caímos em armadilhas nas quais é impossível evitar
a dor por acreditar que sejamos imunes a tais acontecimentos. Quando isto
acontece é porque ignoramos que a maior batalha é aquela que travamos
internamente, contra o nosso próprio eu que não consegue situar-se face às
mudanças que ocorrem ao nosso redor. Uma espécie de cegueira, ou negação de
nossos próprios temores.
Não existe uma fórmula mágica
para se evitar o sofrimento, mas conhecer a si próprio, numerar e pontuar o que
pode abalar sua estrutura emocional para a vida e para o trabalho é um caminho
que pode ser seguido.
João Lago.
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