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terça-feira, 27 de janeiro de 2015

E o tempo passa...

Esta carta eu escrevi faz oito anos enquanto dividia-me geograficamente entre Brasília e Belo Horizonte. Hoje a relendo tenho a certeza que a escreveria novamente, mas agora muito mais feliz, pois fiquei ainda mais rico de muitas amizades.


Brasília, 29 de janeiro de 2007

Caro(a) Amigo(a).

Nesse último sábado completei quarenta anos e talvez porque eu esteja emocionalmente fragilizado neste momento pela distância que me separa de todos aqueles que amo e quero muito, deparei-me fazendo um balanço dos últimos trinta e seis anos de consciência plena de minha existência, de minhas lembranças de menino, de adolescente e de homem.

Esse balanço, que nada mais é do que reflexões sobre meus relacionamentos e minhas realizações, chegou a constatação lógica que as lembranças de minha história que temos em comum não foi marcada pelo tempo de nossa convivência, mas pela intensidade dessa relação pessoal e como particularmente ficou marcada em minha recordações. Simplificando, se escrevesse um livro de minhas memórias provavelmente não haveria uma correlação entre o tempo de convivência e laudas escritas. A percepção óbvia é que são as intensidades das relações humanas que marcam a nossa memória e não a sua quantidade. Dessa forma, a quantidade exata de páginas que escreveria particularmente sobre ti, seria na proporção do impacto que o fato de ter-te conhecido modificou o homem que sou hoje.

Não falarei muito das conclusões que tive acerca de meus relacionamentos, haja vista que sou feliz com todos os que tenho, pois são muitas histórias para contar e que não vivi esses quarenta anos em uma cidadezinha qualquer e de forma tão besta  (lembrando Drummond). Entretanto, falarei um pouco mais de minhas realizações, cuja conclusão é que foram pífias, mas do ponto de vista estritamente material, que isso seja bem esclarecido.

Não acumulei patrimônios que poderiam fazer-me respeitado por aquilo que possuo. Posso exemplificar isso a partir de um comentário que um amigo me fez no início da semana passada, quando ao passarmos por um sedan lustroso e equipado, parafraseou: “esse é o carro que separa os homens dos meninos”. A dita frase poderia ser estendida para uma casa, uma gorda conta bancária ou qualquer outro bem físico que pudesse representar a posse de um excelente patrimônio.

Não fui uma criança materialmente rica e hoje aos quarenta anos não sou um homem rico. Fui de certa forma incompetente em transformar minha capacidade intelectual em cifras, gordas cifras, revelando em mim certa frustração momentânea. Assim, se fiquei profundamente satisfeito com a primeira parte de meu balanço pessoal (meus relacionamentos), fiquei decepcionado com o segundo (minhas posses). Entretanto, antes que pudesse lamentar-me mais, percebi que se eu gastasse todas as minhas energias para acumular dinheiro seria percebido como homem por itens meramente materiais, e não pela impressão de quem realmente sou. É como se for homem fosse possuir um carro bonito e que isto abrisse as portas para conhecer o amor de uma mulher. Nesse ponto digo que durante toda a minha vida dediquei-me a amar como um menino e não me arrependo um dia sequer disto.

Talvez se tivesse muito dinheiro e, mesmo assim, uma vida besta, enveredaria para a filantropia como forma de redenção, pois esse é o caminho verdadeiramente positivo que qualquer um pode chegar, ficando em paz com a sua consciência, ao invés de somente reclamar que os impostos que se paga não retorna revertido na melhoria da sociedade e ponto. Felizmente a filantropia não se resume somente em fazer doações, já que existe a carência de voluntários nos mais variados projetos sociais, ou seja, o importante é continuar indignando-se e agindo. Assim, de uma forma ou de outra, indignar-se continuará sendo a centelha básica de toda a ação social.

Termino esta mensagem dizendo que me sinto muito feliz e em paz comigo mesmo, na consciência de um homem, na simplicidade de um menino que busca nas pessoas a inspiração necessária para o exercício do amor e da compreensão humana. Portanto, neste momento, tenho um capítulo especial gravado em minha história graças a ti.

Quero muito agradecer-te por ser meu(minha) amigo(a).


João Lago

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Je ne suis pas Charlie (eu não sou Charlie).

Gostaria de iniciar esta resenha com a seguinte reflexão: Em uma escola qualquer, certo jovenzinho arranca risos colocando apelidos (pintor de rodapé, rolha de poço, vesgo etc.) em certos colegas e ridiculariza comportamentos que não sejam compatíveis com aqueles que norteiam sua conveniência. Nas portas do banheiro da escola, solitário difama professores e funcionários por meio de sua arte irreverente que também faz rir somente aqueles que não são os alvos de seus ataques. Se esse jovenzinho for descoberto e encaminhado para o serviço psicopedagógico da escola, muito provavelmente o psicólogo poderia classificar a atitude do moleque como um exacerbado desejo de chamar atenção e convocaria os pais para discutir o comportamento do menino. Por outro lado, partindo de um ponto de vista puramente pedagógico, um educador frente a um quadro deste que atitude tomaria? Trataria o caso como falta de educação e transgressão de princípios éticos e de moral e puniria, ou o apoiaria por acreditar que o aluno, mesmo precocemente, apenas expressa sua liberdade de expressão? Qual o limite que define a liberdade e o abuso deste direito?

O mundo ocidental mostra-se novamente boquiaberto com o terrorismo islâmico em solo democrático, no qual a liberdade de expressão e a imprensa livre são conquistas da sociedade, normalmente expressa na carta magna da nação. A França, no preâmbulo de sua constituição federal de 1958, estabelece o direito à liberdade de expressão ao reconhecer a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, época da revolução francesa, que no seu artigo 11 diz: “A livre expressão de pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais preciosos de um homem: todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, salvaguardo a responder dos abusos desta liberdade nos casos previstos em lei” (em minha livre tradução).

Cumpre dizer que a Declaração dos Direitos do Homem, peça do iluminismo francês, inspirou diversas constituições de países no direito a liberdade de expressão, inclusive a brasileira, mas leis ordinárias e complementares (ou infraconstitucionais) acabam por disciplinar o abuso que possam derivar no exercício deste direito. Por exemplo, a injúria, a calúnia e difamação no Brasil estão tipificadas no código penal (artigos 139 a 140) e tem como princípio salvaguardar a honra das pessoas. E o respeito à honra é muito anterior ao iluminismo francês, tanto que o dramaturgo William Shakespeare no Século XVI escreveu a seguinte pérola: “quem da minha bolsa rouba tira ninharia, mas quem do nome honrado espolia-me, priva-me de algo que não o enriquece, mas que me deixa paupérrimo”. Otelo, o mouro de Veneza, enganado por Iago lava sua honra com sangue ao matar sua mulher Desdêmona. Destarte, até 1984 o código penal brasileiro dava motivos para absolver Otelo com a tese da “legítima defensa da honra” que tinha guarida em seu artigo 27, pois no caso de indivíduos “se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime” poderiam ser inocentados. As modificações havidas no código penal atualmente não exclui a imputabilidade penal motivada pela emoção e paixão (artigo 28).

Em 2009, por decisão do Supremo Tribunal Federal – STF, no Brasil foi proscrita a chamada Lei de Imprensa que sobreviveu ao fim da ditadura militar e era bastante utilizada até então para processar e punir empresas de comunicação e jornalistas. Assim, na falta de uma legislação específica, os juízes para decidir sobre ações criminais e de indenização contra jornalistas tem somente a Constituição Federal e os códigos Penal e Civil. No entanto, tanto a liberdade de expressão, quanto a imprensa livre, em muito incomoda governos déspotas e corruptos, pois são esses os mecanismos democráticos de reação de uma sociedade livre. Quando a imprensa e a opinião de cidadão ordinário incomodam, vê-se emergir tentativas açodadas de cerceamento de liberdade por meio de regulamentação da imprensa e, mais modernamente, das mídias sociais na internet. O ministro das Comunicações Ricardo Berzoini, nomeado por Dilma para iniciar seu segundo mandato, é reconhecidamente identificado como defensor da censura aos meios de comunicação, logicamente quando são escancaradas as críticas e as denúncias aos membros de seu partido, o PT, e aliados, mas não vamos perder tempo com este assunto (por enquanto).

Periódicos como New York Times (EUA), Le Figaro (França), La Repubblica (Itália), El País (Espanha) não publicam charges na primeira página, mas existem jornais que usam o recurso para chamar atenção, como o francês Le Monde e o brasileiro O Globo dentre outros. No caso do Charlie Hebdo a charge é a própria primeira página, que exposta nas bancas para que qualquer transeunte a veja está a cumprir o papel de chocar e criar polêmica. Seria como o jovenzinho rebelde citado logo no início que age assim para chamar atenção para si. Assim, sua crítica ácida é construída para ofender crenças e valores preciosos para muitos e não permite que o não leitor, que caminha na rua, tenha opção de ignorar a sua existência. Agora, com esse bárbaro atentado, todo o escárnio do Charlie Hebdo pelas crenças e valores foi exposto em âmbito global e o seu bullying moral elevado à categoria máxima de “liberdade de expressão”. No entanto, eu tenho a mais profunda convicção que os cartunistas mortos do Charlie Hebdo deveriam continuar como estavam, ou seja, vivos e cumprindo o seu papel de ofender para criar polêmica e vender jornal, mas fundamentalistas estúpidos resolveram lavar sua irracionalidade com sangue, cumprindo o seu papel de gerar mais ódio e mais intolerância.

A revolução francesa trouxe para o mundo o lema “liberdade, igualdade e fraternidade”. Em um mundo racional e de direitos igualitários não se admite que a paixão seja motivo para matar. Em nações democráticas é necessário permitir que qualquer um tenha liberdade de expressar sua opinião. Em uma sociedade que busca a paz é necessária a tolerância e o respeito, que são duas condições essenciais para que se viva a fraternidade.

Je ne suis pas Charlie, mais je regrette toute le forme de violence. Ce qui manque dans le monde c'est la fraternité et surtout le respect et la tolérance entre les hommes.


João Lago.
Administrador, professor e morador do Conjunto Santos Dumont.