Em março 2022, na Gare du Nord em Paris, aguardávamos em uma longa fila para comprar uma passagem de trem até Roma, quando vimos caminhar logo atrás de nós uma senhora, que acredito ter por volta de cinquenta anos, carregando uma enorme mochila de viagem nas costas. A Ucrânia havia sido invadida pela Rússia há pouco mais de uma semana e os primeiros refugiados chegavam na França. Aquela mulher, vestida com roupas modestas e com um lenço azul cobrindo a cabeça, carregava tudo o que foi possível levar consigo para fugir da destruição e da morte. Não falava francês, usava uma lupa estilo detetive para ler, sabia poucas palavras em inglês e tentava comprar uma passagem para uma cidade próxima a Nice, onde teria amigos que a esperavam por lá.
Em dado momento, uma atendente no início da fila avisa (em francês) que aqueles que fossem pagar em dinheiro, utilizando as máquinas de autoatendimento, não precisavam ficar enfileirados, pois aquela fila era para quem fosse comprar diretamente com um atendente no guichê. Imediatamente deixei a fila e muito rapidamente compramos nossa passagem para o dia seguinte e na saída vimos novamente aquela senhora, sem entender o que estava acontecendo ao seu redor, ainda na fila. Foi quando nos aproximamos, com aquela solidariedade brasileira que nos é característica, tentando nos comunicar em inglês e utilizando também o tradutor do Google, buscando orientá-la e servir de intérprete para atendente que só falava francês. Naquele momento, a face mais cruel de uma guerra fazia-se tão presente diante de nossos olhos, pessoas expulsas de suas casas, vagando por um país estrangeiro, sem falar a língua local, carregando poucos pertences e sofrendo com a indiferença que toda metrópole é capaz de oferecer a quem se aventure enfrentá-la em desigualdade de condições.
Nesta sexta-feira (24/2) faz um ano que a Rússia invadiu um Estado soberano e, para não sobrar dúvidas do que seja isso, a definição de soberania para uma nação envolve a existência de um povo que tenha um governo agindo dentro de determinado território. No que se refere a Ucrânia, todos os conceitos que a definem com uma nação soberana estão cumpridos, considerando ainda que aquele país tem língua própria e que, mal comparando, o russo e o ucraniano são tão similares como o português e o espanhol. Assim, a diferença linguística confere uma frente de resistência cultural que sobreviveu a russificação ocorrida no Século XVIII, por meio das conquistas territoriais do Império Russo, na qual o czar Alexander II em 1876 proibiu que livros didáticos e religiosos fossem escritos em ucraniano.
A integração política da Ucrânia em 1922 à URSS – União das Repúblicas Soviéticas (atual Rússia) permitiu o ensino do ucraniano nas escolas como oposição à política czarista, mas o russo continuou sendo falado porque era a língua da sede do poder, fazendo que a maioria dos ucranianos sejam bilíngues (ucraniano e russo). No entanto, após o colapso da URSS em 1991, a Ucrânia torna-se independente e cresce um movimento nacionalista nas décadas seguintes que culminou na supressão de toda a memória comunista, modificando nome de ruas, demolição de estátuas e de monumentos que faziam menção a líderes soviéticos. Em 2019, a Ucrânia aprova uma lei que torna obrigatório o idioma ucraniano para os funcionários públicos, forças armadas, profissionais da saúde e professores, inclusive em regiões ao leste do país que predominantemente falam o russo. Naquela época, Vladmir Putin considerou a medida discriminatória e prontamente a condenou acirrando os ânimos entre Moscou e Kiev. A língua russa, até mesmo falada pelo presidente Volodymyr Zelenskiy enquanto comediante na TV Russa, passa por declínio a partir do momento que a Ucrânia adota uma aproximação política com o ocidente, principalmente pró-Europa o que irrita ainda mais Moscou.
A guerra iniciou não somente porque a Ucrânia manifestou interesse em integrar a aliança militar do ocidente – OTAN, que a partir de 1999 estendeu-se para a Europa Oriental e chegando inclusive a Turquia, mas porque a Rússia de Vladmir Putin, um saudosista do poder geopolítico da extinta URSS, não se conforma com o fim de sua hegemonia política territorial e teme que outras nações eslavas ainda pró Rússia possam seguir o mesmo caminho da Ucrânia. Deve-se destacar que com o fim da URSS em 1991 a Ucrânia tinha em seu território aproximadamente 3.000 armas nucleares, mas em troca do reconhecimento de sua independência, hoje ameaçada, por meio do acordo de Budapeste assinado por Rússia, Reino Unido e EUA, abriu mão de todo esse arsenal atômico. É bem verdade que se a Ucrânia ainda fosse uma potência atômica a Rússia teria muito mais cuidado em atravessar a fronteira. Porém, como essa guerra “convencional” completa um ano com uma resistência heroica da Ucrânia, turbinada com armamentos cedidos pela OTAN, os ânimos de um cessar fogo e paz estão ainda longe de acontecer. A Rússia militarmente seria humilhada se retirar suas tropas da Ucrânia sem qualquer contrapartida que não passe por cessão de território pelos ucranianos, aqueles mais ao leste que falam russo e que se identificam com Moscou.
O cansaço da Rússia com a guerra a faz ameaçar utilizar seu arsenal nuclear na batalha, mas se essa fronteira militar for ultrapassada, as consequências podem elevar o conflito para uma terceira guerra mundial com bombas atômicas também lançadas pela OTAN no território russo que até o momento não foi atacado. Putin espera uma saída honrosa e talvez ela possa vir com a intermediação do Brasil, China e Índia, países que compõem o BRICS e que podem trazer um desfecho inédito, ou seja, sem o protagonismo daqueles países que com a Rússia venceram a Segunda Guerra Mundial (EUA, Reino Unido e França). Finalizando, repito aqui uma frase que resume a resistência ucraniana e que aponta para uma guerra longe de acabar: “Se a Rússia parar de lutar e se retirar, a guerra termina. Se a Ucrânia parar de lutar, a Ucrânia acaba”.
João Lago