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segunda-feira, 27 de julho de 2020

Malícia


A visão que eu tenho do paraíso é antagônica daquela que expulsou Adão e Eva do jardim do Éden pela desobediência ao comer o fruto proibido. Afirmo isto porque a perda da inocência, ou melhor dizendo, a ascensão da malícia os fez perceber que estavam despedidos e o meu modelo mental de paraíso é justamente o retorno a uma visão não maliciosa de nós mesmos e dos outros.

Pensemos em alguém que podemos identificar como malicioso, ou maliiciosa, já que essa característica parece estar muito bem distribuída e equilibrada entre os dois sexos. Porém, antes de continuar a descrever minha visão de paraíso vejamos no dicionário a definição de “malícia”:

1. aptidão ou inclinação para fazer o mal; má índole; malignidade, maldade.
2. habilidade para enganar, despistar; astúcia, ardil, manha.

Agora que sabemos o significado lato de malícia imaginemos um local de total ausência de todos esses termos e eis aqui minha visão de paraíso, pois o fastio da malícia nos permitiria observar todas as manifestações humanas, inclusive a nossa, sem a inclinação para a perversidade. Assim, se ao comer o fruto proibido a nudez é motivo de lascívia, o meu retorno ao paraíso é aquela que não vê obscenidade no corpo humano e todas as taras perderiam os que as alimenta: a malícia.

No entanto, a malícia parece somente existir na vida em sociedade, pois acredito ser um pouco absurdo alguém ser malicioso consigo próprio. A maldade em si ocorre somente a partir de nossas relações com o mundo e o julgamento que fazemos daquilo que percebemos. Contudo, o julgamento malicioso não é a expressão da maldade enquanto restrita a simples manifestação da palavra, mas é maligna quando indutora de ações perversas e é bem verdade que todos nós carregamos malícias no pensamento e mente aquele que diz que não a tem. No entanto, o grande problema é quando deixamos esses pensamentos nefastos dominarem por completo nossas palavras e ações.

Hannah Arendt, uma filósofa judia alemã que foi testemunha dos horrores do nazismo apontou a banalização do mal no totalitarismo que busca no controle das ações humanas o alinhamento com as maldades que emanam do líder totalitário. Não há o respeito pela individualidade e a destruição de todas as instituições como sindicatos, escolas, associações, igrejas, famílias etc. que sejam contrários se faz necessário para que a maldade seja banalizada e incorporada com uma ação necessária.

A malícia está nas ações de governos e de algumas empresas que estão sob o comando de gente que personificam a maldade e tentam justificá-la como necessária a um interesse difuso, quando na verdade o preço da destruição das organizações de interesse difuso será para o benefício de uma coletividade que aderiu ao mal. Por isso destroem entidades que defendem a cultura, a ciência (universidades inclusas), as de proteção ambiental, as de interesse de grupos étnicos (índios inclusos) e buscam retirar das leis proteções trabalhistas argumentando que são boas e necessárias aqueles que justamente serão os mais prejudicados.

Embora o rol de maldades parecesse não promover diretamente a destruição das famílias, eis que a covid-19 vem escancarar que em prol da malícia que existe nessa gente é necessário que pessoas devam morrer por um suposto benefício econômico que no final de tudo não será garantia de êxito, mas é certo que já deixou famílias destroçadas pela perda de alguém muito importante em laço afetivo e, ou material. Famílias que perderam para a covid-19 o principal, ou membro importante para o sustento familiar e que provavelmente terão que enfrentar privações, perdas de patrimônio e de qualidade de vida em benefício de um projeto político e de poder que tem sua raiz na malícia. Governos quando expõem as famílias a um contato forçado com um vírus que não possui remédio ou vacina pode ser sim chamados de genocida e muitas dessas decisões ainda serão levadas aos tribunais pedindo reparação por todas essas mortes (hoje mais de 85 mil).

Alguns governos e empresas estão obrigando os declarados grupos de risco e de pessoas que coabitam com grupos de risco o retorno ao trabalho, ou seja, aqueles mais propensos a morrer de covid-19 estão sendo forçados a serem exporem ao vírus, ou mesmo de levar a doença para um parente idoso ou qualquer outro que tenha comorbidades que favoreçam a forma mais grave da doença. Quem tem mais de 60 anos costumam a ser os mais vulneráveis, pois possuem um sistema imunológico mais enfraquecido e toda aquela polêmica inicial de isolamento vertical ou horizontal agora está sendo reduzida a uma única via: a da completa exposição de todos e que morram aqueles que tem que morrer mesmo. Se essa ação de governos e empresas não é uma ato genocida então precisamos urgentemente revisar a história e absolver os condenados no tribunal de Nuremberg. Outro ponto importante é esclarecer que aqueles mais propensos a morrer são os que dependem de um hospital público, haja vista que as estatísticas dizem que a taxa de cura é 50% em hospitais privados, ou seja, novamente é a base da pirâmide social que mais tem a perder, inclusive a própria vida.

Finalizando, quando o Supremo Tribunal Federal determinou que as políticas de isolamento deveriam ser promovidas pelos governos estaduais e municipais foi por meio da perspectiva que o Brasil, por ter característica continental, obviamente em suas regiões geográficas haveria graus diferenciados de infecção e de controle da pandemia. O que fez, por exemplo, que Manaus fosse a primeira capital a colapsar o sistema público e privado e também a primeira, depois de quatro meses, a ter pouco menos de 50% de ocupação das UTIs. Infelizmente, algumas cidades começaram a viver o drama manauara e uma delas Ribeirão Preto, uma das mais ricas cidades do noroeste paulista que começou a colapsar. Essas diferenças de distintos momentos da pandemia nas regiões brasileiras faz que a média das mortes permaneça estável em mais de mil mortes diárias, pois quando um capital apresenta melhora, como o caso de São Paulo e Manaus, os casos explodem no interior sendo mais dramático em São Paulo devido ao tamanho de sua população.

Quando uma empresa ou entidade federal que tem funcionários em várias cidades de regiões brasileiras determina que os grupos de risco, ou aqueles que coabitam com esses retornem ao trabalho, ignoram justamente os diversos momentos que vivem as regiões brasileiras e expõem seus funcionários e familiares ao elevado risco de morte.

A malícia que carregam as ações de governos e de empresas simplesmente aumentam a sensação que vivemos em um inferno de longa duração e que tem por finalidade admitirmos que tudo isso foi inevitável e nos vejamos tacitamente banalizando o mal. Não podemos ser vencidos pelo cansaço e o nosso retorno ao paraíso passa pela constatação que eles é que estão sem roupa e por mais que se apoiem na mentira toda a sua malícia está exposta.

João Lago

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