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domingo, 28 de junho de 2020

O escorpião está no meio da sala


Um ditado popular diz que “a vida imita a arte”, mas a bem da verdade, anterior a existência das artes está o que chamamos de vida humana. Nas cavernas o homem pré-histórico já deixou nas paredes as pinturas rupestres que é uma evidência que desde muito tempo é a arte que imita a vida.

Existe um filme de 1993, chamado O Dossiê Pelicano do diretor Alan Pakula, que conta a história de uma estudante de direito que desvenda o assassinato de dois juízes da Suprema Corte dos EUA. O roteiro foi construído, assim como ocorre no Brasil, no fato do presidente indicar os membros do Supremo e que, a depender das convicções do indicado, as decisões de determinado tema podem ser manipuladas. O filme conta a história de um empresário mafioso, aliado a advogados bandidos, que assassinam dois juízes da suprema corte para que o presidente pudesse indicar substitutos que fossem favoráveis a revogação da proteção ambiental de um santuário ecológico.

Na trama o presidente estadunidense estava sendo manipulado a partir da amizade que possuía com o empresário mafioso, além do fato de haver recebido ajuda financeira para sua campanha advinda do mesmo. O presidente não sabia dos assassinatos, mas com a exposição dos fatos desiste de concorrer a reeleição e é aconselhado a indicar para a corte dois novos juízes com profunda inclinação para as causas ambientais. É importante salientar que na trama a estudante de direito perseguida consegue ajuda e proteção de um jornalista que compreende a gravidade dos fatos e expõe o crime para o público.

Na mesma linha de bandidagem, o filme brasileiro “Tropa de Elite 2” de 2010, dirigido por José Padilha, aborda o envolvimento de políticos corruptos ligados a milicianos em uma simbiose de proteção mútua, seja no apoio político e financeiro para campanhas políticas ou pela eliminação de adversários que são assassinados pelos milicianos. Aqueles cidadãos de bem que assistiram ao filme de Padilha provavelmente não torceram nem para os milicianos, tão pouco para os políticos corruptos e devem ter vibrado com a vitória do Capitão Nascimento contra a bandidagem imiscuída na política e na polícia.

No filme O Dossiê Pelicano, apesar de políticos poderosos, advogados renomados e empresários com grande poder econômico, uma simples e desconhecida estudante de direito, com o auxílio de um jornalista diligente e independente, destruiu toda uma trama criminosa que teria sucesso se não houvesse uma imprensa livre capaz de expor qualquer fato sem censura, apesar do poder e influência dos atores envolvidos. Na obra dirigida por José Padilha, o capitão Nascimento, agora como secretário de segurança pública, consegue ajuda de um parlamentar da oposição para agir politicamente contra as milícias do Rio de Janeiro por meio de uma Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI, porém no final há uma grande queima de arquivo (leia-se assassinato de envolvidos) e os políticos corruptos acabam reelegendo-se. Diferentemente do filme estrangeiro o cinema nacional foi mais verosímil a nossa realidade.

Em um país a existência de uma imprensa livre e de políticos de oposição é uma demonstração de maturidade democrática. Assim, quem apoia os discursos pedindo a supressão da liberdade de imprensa e a perseguição e eliminação da oposição em tese tem tudo para torcer para os bandidos de O Dossiê Pelicano e de Tropa de Elite 2. Também parece óbvio que as instituições democráticas somente podem funcionar se atuarem de forma independente e delimitadas em suas competências constitucionais. O poder executivo não é mais importante que o legislativo e judiciário, tão pouco dos dois últimos mais importantes entre si, nem existe hierarquia de relevância entre os três. Quanto a imprensa, apesar de não ser um poder constituído, sua existência e proteção está prevista na Constituição Federal – CF em seu artigo 220 e a antiga Lei de Imprensa, editada durante a ditadura militar, que nitidamente foi elaborada para constranger e ameaçar jornalistas, em decisão do Supremo Tribunal Federal – STF em 2009 foi considerada não recepcionada pela CF de 1988.

Em tempos atuais, parece que roteiro da vida real, que foi construído envolvendo políticos corruptos, milicianos, advogados e empresários com grande inclinação para o mundo do crime, não passa ao largo do que foi retratado no cinema. Contudo, uma parte da plateia tende a torcer descaradamente para os bandidos, ou mesmo coloca em dúvida o que demonstra ser a verdade dos fatos.

O que faz uma parte da população ainda não acreditar no que está sob os seus olhos não virá por meio de uma resposta fácil, pois este fenômeno não é motivado por uma única variável, mas arrisco dizer que há um desgaste do politicamente correto e um esgarçamento de valores cristãos por determinados grupos que tem os seus atos “glamorizados” por certos políticos, artistas e jornalistas. É importante acima de tudo que o respeito a ética seja restabelecido e perceber que não dá para continuar ignorando a relativização dos valores. A onda pseudoconservadora que assolou o Brasil e que culminou na eleição de Bolsonaro ainda não passou, mas é certo que muitos que ajudaram a elegê-lo perceberam que Bolsonaro não é aquilo que dizia ser, ainda fosse óbvio que Bolsonaro sempre foi o que é que não abandonaria sua essência. Aqui também vai uma dica: antes de intitular-se conservador, procure pesquisar o que é o conservadorismo para, pelo menos, entender porque ao tentar ser conservador venha a ser rotulado de fascista ou de coisa pior. Procure também estudar o que seja o fascismo.

O escorpião, apesar de perigoso, é um animal de hábito noturno, que vive escondido e não oferece muito risco. Porém, se inadvertidamente for pisado, ou a mão penetrar onde esteja escondido, fatalmente ele picará o incauto porque inocular veneno é da essência quando se sente ameaçado. Não se engane, o escorpião é uma praga que resiste ao veneno que mata baratas e insetos. Na verdade o escorpião é um parente mais robusto de uma aranha, sendo capaz de resistir até mesmo a radiação que mata um ser humano.

A sociedade brasileira colocou o escorpião no meio da sala e sinceramente assim como não dá para torcer para o bandido das telas do cinema, também parece não ser salutar crer que o escorpião possa mudar em sua essência.

João Lago.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

O exemplo de vida que conquista respeito e admiração


Existem certas expressões, nas mais variadas línguas, que demonstram sinal de respeito. Na adolescência, quando estudante de francês aprendi que o pronome “Tu” (pronuncia-se ti) não poderia ser utilizado nas conversas formais, naquelas que o interlocutor é um desconhecido, ou uma pessoa mais idosa, ou alguém na qual se deve respeito. O “Tu” no francês somente é aceitável quando falamos com crianças, ou com pessoas que tenhamos uma completa intimidade. Assim, para os demais casos devemos utilizar o “Vous” como sinal de educação e/ou respeito.

Quando estive na Colômbia pela primeira vez em 2008, em conversa com o padre Jorge Serrano, amigo e sacerdote jesuíta, disse-me que no Brasil chamar um bispo católico de “Dom”, que no espanhol somente é usual para atribuir distinção social ou muito respeito a alguém, em sua opinião foi a maneira única que a língua portuguesa adotou do espanhol para designar respeito ao líder católico. Em português não temos um similar para o “Dom” espanhol, mas temos uma corruptela do pronome de tratamento “senhor” que utilizamos com frequência. Por exemplo, quando alguém que merece distinção e respeito, mas temos o privilégio de sua convivência e intimidade, adotamos chamá-lo de “Seu”, em vez de senhor, porque esse último pareceria extremamente formal. O mais interessante é que chamar alguém de “seu” ou “dona”, em vez de senhor ou senhora, além do respeito está implícita uma certa intimidade.

Já se perde em minha memória o exato momento que deixei de chamar Alfredo Peroba da Paz Jatobá de senhor e passei a chamá-lo de simplesmente de Seu Alfredo, mas acredito que a educação familiar daqueles maiores de cinquenta anos hão de achar isso bastante comum e até mesmo deselegante e grosseiro se o chamasse simplesmente por “você”. Infelizmente, talvez por uma necessidade de rejuvenescimento, uma nova geração que chega aos quarenta anos já não deseja ser chamado de “seu” ou “dona” e deseduca os jovens ao sugerir em serem chamados por “você”. No entanto, a certa ojeriza dessas pessoas pela distinção que esses tratamentos trazem apenas colocam mais reverência naqueles aceitam serem chamados de “seu” e “dona”. Absolutamente, não se trata de uma simples discussão semântica, mas uma reflexão que busca colocar grau de distinção em nossas relações pessoais, principalmente quando o destinatário não solicita tal deferência, mas traz em nós a forma expressa que tal pessoa é merecedora de toda estima, respeito, amor e consideração.

Conheci o Seu Alfredo Jatobá nos meus dezessete anos e devo confessar que naquela época, como já descrito aqui, não me recordo quando deixei de chamá-lo por Senhor Alfredo, mas arrisco dizer que foi quando o simples respeito foi sucedido e adicionado a admiração e intimidade. Muito mais que o meu sogro, o Seu Alfredo transformou-se em um amigo a quem se pode buscar para um conselho, para compartilhar uma preocupação ou alegrias. Além de um pai exemplar, é exemplo de caráter altivo, de cidadão ético, justo e fraterno que nos dias de hoje tais qualidades parecem serem impossíveis de pertencerem a uma mesma pessoa. Como seu amigo, por meio de nossas longas conversas, pude passear pela Manaus dos anos 30, 40, 50 e 70 com uma riqueza de detalhes de alguém com uma memória privilegiada que merecia um estudo profundo, pois muitas das suas lembranças contam a história do crescimento de uma Manaus de cerca de 100 mil habitantes para a metrópole de 2,2 milhões. Por meio de suas recordações eu pude passear nos extintos bondes da capital manauara, assistir uma partida de futebol no Parque Amazonense, antigo palco do campeonato dos clubes de Manaus, andar nos regatões que abasteciam o comércio das cidades das margens do Rio Solimões e conhecer uma época e costumes que se perderam nos livros de história.

Alfredo Jatobá, com os 96 anos que completa em 2 de junho, é hoje o funcionário aposentado mais longevo do Banco do Brasil e várias homenagens já recebeu de seus colegas que demonstraram o carinho e, principalmente, a admiração que adquiriu de seus pares depois de décadas de bons serviços prestados. Nada de surpreendente para um ser humano integro que conquistou amigos e admiradores ao longo de sua vida. Eu tenho o privilégio de apenas ser mais um.
Eu poderia estender esta resenha, mas acho que um conteúdo biográfico de um cidadão tão admirável não poderia estar descrito em poucas palavras. A pandemia que vivemos não nos permite que façamos uma grande homenagem reunindo todos os filhos, netos, bisnetos, outros familiares e amigos, mas tenho certeza que não faltará oportunidade enquanto amor existir no mundo e haver nesta terra representantes que emulam tão sublime sentimento. Parabéns Seu Alfredo Jatobá pelos seus 96 anos.

João Lago