Jamais
poderia pensar a falta que tenho sentido do império do politicamente
correto, mesmo sendo alguém que em passado recente tenha-lhe deitado
sérias críticas. Raciocinando sobre tal contradição, não
desejando render-me ao óbvio e assim diminuir esta minha pretensiosa
reflexão, resolvi ampliar a visão além do discurso moralista ou
posicionamento anárquico ao estilo de “se há
governo sou contra”.
A
sociologia, assim como a psicologia, apoiam que, “não sendo o
indivíduo uma ilha”, é da natureza humana a busca da relação de
pertencimento. Essa vontade de encontrar espelhos que possam refletir
nossa visão de mundo e encontrar ouvidos e cabeças que possam
balançar afirmativamente a cada palavra pronunciada. Porém, em uma
sociedade na qual as pessoas para terem voz hão de mostrar certa
competência intelectual, respaldada por títulos acadêmicos, o
medíocre, que não consegue ler um texto com mais de duzentos e
oitenta caracteres, sentia-se intimidado a abrir a boca, afinal não
leu, não estudou, não se especializou intelectualmente em nada. No
entanto, o sucesso empresarial começou a abrir plateias de ouvidos
ávidos e, neste caso, não importa muito o diploma na parede, mas a
quantidade de dinheiro em conta-corrente.
A
revista Veja, em sua edição 1671 de 18 de outubro de 2000, trouxe a
entrevista de Larry Ellison, fundador da Oracle que na época,
segundo a Revista Forbes, tinha uma fortuna de 47 bilhões de
dólares, estando em segundo lugar no ranking de bilionários.
Afirmou desejar ultrapassar Bill Gates, disse que não era somente
pelo dinheiro, porque “quando você conquista o primeiro bilhão,
os carros ficam mais velozes, os aviões mais confortáveis e as
mulheres a sua volta com as pernas mais compridas” afirmando que “a
partir daí a pessoa já comprou tudo o que os dólares permitem”.
Larry Ellison completa dizendo que ao ultrapassar a fortuna de Bill
Gates “faz sua aura tornar-se mais iluminada e intrigante”. Por
uma mera coincidência tanto Larry Ellison quanto Bill Gates
abandonaram os cursos universitários para fundar suas empresas.
O
sucesso nos negócios, assim como os títulos acadêmicos, parecia
ser a credencial para que alguém pudesse ser ouvido, mas em tempos
de redes sociais um novo tipo de indivíduo, agora chamado de
“influenciador digital”, desponta pela quantidade de seguidores,
ou seja, pouca importa o seu currículo acadêmico ou a fortuna
acumulada, mas quantos estão a segui-los. Em alguns desses casos a
fortuna vem a reboque com os seguidores, mas parece não determinar
um retorno ao mundo acadêmico. Pelo contrário, alguns aproveitam a
grande plateia e negam o conhecimento científico, semeiam
desinformação, notícias falsas, ou fazem um recorte de fatos,
omitindo o contexto geral e manipulam a informação de uma maneira
que possam justificar uma determinada ideia. Esses influenciadores
digitais, de relativo sucesso, também encontraram na politica a
capitalização da fama na forma de votos e conquistaram um cargo
eletivo.
O
empoderamento de gente desqualificada nas redes sociais que
disseminam preconceitos, mentiras, combatem a ciência e distorcem os
fatos históricos somente é possível porque encontra uma horda que
se imagina representada por essas ideias. Gente que se sentia
intimidada pelo politicamente correto agora consegue retirar das
sombras suas iniquidades como o racismo, xenofobia, misoginia,
aporofobia, homofobia etc. É a vitória do Id sobre o Superego, ou
melhor dizendo, são os instintos mais desprezíveis da natureza
humana sobrepondo a moral e a ética. São as trevas encontrando um
campo fértil em uma sociedade que não investe em educação e
cultura, ou é minimalista ao chamar de arte, ou expressão cultural,
quem pede para uma adolescente “sentar” na boca da garrafa, ou
para bater sua “bunda no chão”.
No
entanto, o mais contraditório e paradoxal na sociedade brasileira
atual é que justamente as pessoas que semeiam o ódio, preconceitos
e mentiras são justamente aquelas que se apoderaram do discurso
“moral”. É como se o Ego fosse sequestrado pela Id criando uma
realidade paralela que reescrevesse toda a história da ética
judaico-cristã para que o Superego fosse reeducado em uma
amoralidade típica dos psicopatas. Nessa nova moral vale a pena
sacrificar vidas em nome do dinheiro sob “as bençãos de Jesus”.
Blasfemam, pois além de demonstrar desprezo pela vida do outro,
preferem reverenciar o “deus” dinheiro. Esqueceram que “ninguém
pode servir a dois senhores (…) Não podeis servir a Deus e à
riqueza” (Mt 6, 24), ou ainda, “amarás o teu próximo como a ti
mesmo. Outro mandamento maior que este não existe” (Mc 12, 32). O
Cristo que reverenciamos nesta Páscoa não está presente no
discurso de ódio, nem tão pouco no desprezo pela vida do outro.
Nessa
última madrugada e tive um pesadelo intrigante. Estava em meio a
diversas pessoas em frente da grande pirâmide de Quéops no Egito,
na qual havia uma grande entrada e uma rocha gigante apoiada no sopé
do maosoléu. Em dado momento, corre a informação que um tsunami
estava vindo em nossa direção e para que não morrêssemos
deveríamos todos refugiarmos dentro da pirâmide e fazer rolar a
grande rocha lacrando a entrada. Alguém dizia: “mas quem virá nos
socorrer depois que passar a grande onda?”. Sem ter uma resposta
depois de um longo silêncio eu digo: Se quatro séculos se passaram
e as pirâmides estão aqui, o que vale nossa aflição quanto ao
tempo. A história não nos esquecerá.
Neste
ano de 2020 somos nós os protagonistas da maior crise sanitária
deste século e a história não esquecerá aqueles que
verdadeiramente estavam buscando salvar vidas nos hospitais, nos
laboratórios, nos serviços essenciais, na imprensa, em suas casas e
nos governos.
João
Lago.
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