Certamente devo ter tomado conhecimento da existência de Mr. Hyde nos desenhos do Pernalonga, no qual o dócil doutor Jekyll, que o coelho conheceu no parque, o leva para casa para alimentá-lo. Chegando na casa do médico, após tomar uma poção de laboratório, o amável doutor Jekyll transforma-se em um monstro. O desenho animado inspirou-se no livro chamado O Estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde de autoria de Robert Louis Stevenson, publicado em 1886, que narra a obstinação do doutor Jekyll em provar a teoria que a bondade e a perversidade reside em qualquer pessoa, mesmo naquelas mais cordatas. Assim, para provar sua teoria, cria uma poção que quando ele mesmo a toma o transforma em um monstro, cuja personalidade é assumida como Mr. Hyde.
Muito provavelmente Stevenson tomou conhecimento do famoso caso do francês Louis Vivet que foi o primeiro indivíduo a ser diagnosticado com Transtorno Dissociativo de Identidade em 1885, condição mental que leva a dupla (ou múltiplas) personalidades. Poderá ter sido uma coincidência, mas a partir da obra de Stevenson essa pertubação psicológica inspirou inúmeras obras, sendo uma das mais famosas o filme Psicose de Alfred Hitchcock. O enredo é o mesmo, o jovem tímido e aparentemente inofensivo, chamado Norman Bates, assume a personalidade perversa da mãe para cometer assassinato. Essa obra-prima cinematográfica de Hitchcock é de 1960.
O governo Bolsonaro, em pouco mais de dois anos de governo, já trocou três vezes de ministro da saúde e novamente o faz no pior momento da pandemia. Provavelmente passaremos de 300 mil mortos antes do final de março. No entanto, devemos abstrair dessa estatística funesta e buscar identificar entre esses números um pai, uma mãe, um avô, uma avó, um irmão, uma irmã, um amigo, uma amiga, uma pessoa muito querida. A cada centenas de mortes diárias são famílias que choram e enterram seus mortos, muitos sem direito a velório, ou despedidas em cemitérios. Até o abraço fraterno e o enxugar das lágrimas alheias tem o potencial perigo de transmissão do vírus. Vivemos na mais mortal pandemia e ainda tem gente que faz pouco caso disso.
O general Eduardo Pazuello sai do Ministério da Saúde com o aumento de mortes em todos o Brasil e pelo iminente colapso em, pelo menos, vinte cinco unidades da federação. Em situação melhor, mas não confortável, estão somente o Amazonas e o Rio de Janeiro. O Amazonas colapsou em janeiro por falta de oxigênio e Rondônia e o Acre prenunciam que os estoques de oxigênio podem acabar nos próximos treze dias. O problema é idêntico para todos: a demanda é maior que a oferta e em algum momento dessa curva o ponto de convergência é a escassez. No entanto, não é somente oxigênio que preocupa, mas todos os insumos que são essenciais nas UTIs e o exemplo disso é a aquisição emergencial de bloqueadores neuromusculares e anestésicos para a realização de entubação de pacientes em tratamento contra a Covid-19 em Santa Catarina. Se não forem mapeados todos os insumos essenciais para o funcionamento das UTIs e com o aumento da demanda em todo o país, brevemente não será somente oxigênio, nem a falta de leitos que farão os brasileiros morrerem sem assistência médica.
Com a vacinação caminhando a passos trôpegos e com a perspectiva que nessa toada somente em 2024 tenhamos vacinado toda a nossa população adulta, a única alternativa que nos resta é controlar a circulação de pessoas nas cidades e enfatizar o uso de máscara (de forma correta), da higienização das mãos e do distanciamento social. Porém, essas medidas simples esbarram no comportamento negacionista de Jair Bolsonaro, no qual reside a dúvida que com a saída de Pazuello alguma coisa possa mudar em sua atitude, ou veremos o mais do mesmo.
Sai o general e entra o médico Marcelo Queiroga, cardiologista renomado entre os seus pares, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia e que durante essa pandemia já tomou a vacina e defendeu as medidas simples de prevenção já descritas aqui. Demonstra possuir uma alma cordial que agrada quem está a favor da ciência e é contra o negacionismo, mas infelizmente não sabemos o quanto da poção maldita produzida no Planalto que o cordato doutor já tomou. Resta a dúvida se no conflito de obedecer as ordens do monstro, ou seguir sua determinação de bom médico, qual dessas personalidades irá sobressair-se. Para o bem do povo brasileiro torço pelo doutor Jekyll.
João Lago