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domingo, 27 de maio de 2018

A profecia do fim do mundo


Viralizou na internet um áudio atribuído ao falecido apresentador de TV Marcelo Rezende no qual o mesmo profetizou a greve dos caminhoneiros. Entretanto, assim como as vozes de Silvio Santos, Lula e Gil Gomes, imitar o jeito, os cacoetes e o timbre de voz do apresentador não é um trabalho tão hercúleo. Todavia, como já destacado por este modesto tocador de bumbo, não se deve acreditar em tudo o que circula nas redes sociais, sendo melhor em alguns casos rir despretensiosamente e crer que aquilo está ali para divertir-nos, muito embora muitos levem isso à sério.

Tive a oportunidade de haver atuado na logística de uma multinacional no sudeste do Brasil, tanto na composição de custos logísticos, bem como na distribuição física, além de haver lecionado a disciplina de logística empresarial em alguns centros de ensino universitário. Assim, posso dizer confortavelmente que sendo profecia ou não, a mais reles quiromante, mesmo a mãe margarida, aquela que com os seus sortilégios traz em sete dias o ser amado de volta, poderia ter profetizado uma greve de caminhoneiros que paralisaria o abastecimento do país em tão pouco tempo. Porque o Brasil é uma nação que na década de 70 a base logística foi erguida na tríade: asfalto, pneu e diesel e não seria de estranhar-se que atualmente aproximadamente 66% das mercadorias transportadas no país estejam na carroceria de caminhões (1). Portanto, ao chegar a sua casa, olhe ao redor e será muito provável que quase a totalidade dos bens de consumo de sua residência, em algum momento da cadeia logística, foi transportada por caminhões. Porém, para deixar a situação mais dramática, outro fator que explica porque o país parou nos últimos dias é que, da totalidade da frota de caminhões do país, 60,6% estão nas mãos das empresas e cooperativas, ficando os 39,4% na posse de caminhoneiros autônomos (2). Ou seja, boa parte da movimentação de cargas está na carroceria de caminhões cujos profissionais não estão ligados a nenhuma empresa ou entidade de classe, o que dificulta a identificação de lideranças e explica o porquê de toda a paralisação fosse coordenada, combinada e difundida por meio de mensagens de whatsapp.

A Petrobras não tem obrigação de cuidar de custo operacional de terceiros, mesmo porque a política desastrada de manutenção dos preços dos combustíveis artificialmente congelados no mercado interno, durante os governos petistas aliados à corrupção, deixou a petroleira em estado quase falimentar. Desta forma, a adoção ortodoxa de correção automática dos preços dos combustíveis, a partir da oscilação do barril de petróleo no mercado externo, protegeu o caixa da Petrobras, mas bagunçou com a estrutura de custos do serviço de transporte rodoviário de cargas. Não somente o transportador autônomo foi afetado e as suspeitas de locaute pelas empresas de transporte fazem todo o sentido. Locaute é quando os patrões manipulam e usam o direito de greve dos trabalhadores para atingirem seus fins meramente econômicos empresariais.

Os caminhoneiros autônomos na sua maioria trabalham como terceirizados de empresas de logística que muitas vezes funcionam como agenciadoras de cargas junto a grandes embarcadores, não sendo comum que um caminhoneiro seja contratado diretamente por uma grande indústria. Essa “quarteirização” do serviço, e a pressão sobre custos mais baixos na cadeia logística, acabam por reduzir a margem bruta e o resultado operacional é quase que insuficiente para cobrir todos os gastos necessários para a manutenção do veículo, a sobrevivência do caminhoneiro e de sua família. Considerando que o combustível representa em média 60% dos custos de transporte (3), qualquer aumento no preço desse insumo em períodos tão curtos, e que não possa ser compensado/renegociado no ciclo operacional do serviço, pode representar a inviabilização do transporte autônomo.  Para exemplificar, um caminhoneiro “fecha um frete” em um valor e sai para fazer a entrega, recebendo um adiantamento para iniciar a viagem e ficando para receber o restante quando apresentar o CTRC – Conhecimento de Transporte Rodoviário de Cargas - assinado pelo destinatário. Durante a viagem, o autônomo é surpreendido com o aumento do diesel, que traz um desequilíbrio econômico financeiro do frete. O caminhoneiro faz a entrega e o agenciador estipula um prazo para pagamento, muitas vezes somente depois do embarcador pagar pelo serviço. Nesse lapso temporal, que pode durar mais de 45 dias, suponhamos outro aumento de preço no diesel e o caminhoneiro entra em desespero, pois o frete combinado que ficou ruim agora não fecha a conta. Sendo bastante empático ao caminhoneiro, imaginemos que recebamos o salário hoje e sem aviso prévio os preços dos alimentos sofram dois reajustes seguidos no mês. No mês seguinte, poderíamos correr para o supermercado e fazer compras para garantir um estoque face escalada inflacionária, como bem fizemos antes do Plano Real na época de hiperinflação. Contudo, o caminhoneiro não pode fazer estoque de diesel, tão pouco reivindicar repactuação do frete junto ao agenciador. Assim, o prejuízo recairá sobre o elo mais frágil da cadeia logística.

A política de preço do diesel para veículos de transporte de carga e passageiros, por questão estratégica de interesse nacional, não pode acompanhar o sobe e desce frenético do preço do barril do petróleo do mercado externo, mas não se deve estender esse benefício ao preço da gasolina, nem tão pouco ao preço do diesel destinado aos luxuosos pick-ups de passeio. As nações desenvolvidas desestimulam o transporte individual e privilegiam o transporte público de massa, sendo justamente o contrário da realidade brasileira. Transportes públicos de péssima qualidade empurram o cidadão ao desejo de possuir automóvel e o consumidor brasileiro faz a alegria das montadoras estrangeiras, cujas margens de lucro é três vezes maiores no Brasil que nos países sede de suas origens (4). Portanto, por mais que seja desagradável o sobe e desce dos preços da gasolina nos postos, o abastecimento dos veículos de passeio não deve ser prioritário. Talvez os altos preços da gasolina possam ser uma medida pedagógica para que o cidadão de classe média efetivamente possa exigir um transporte público de qualidade e deixe de considerar o ônibus (e demais meios de transporte de massa) como feito para transportar pobre.

O movimento paredista dos caminhoneiros que paralisou o Brasil não é um assunto que se resume a política de preços da Petrobras, ou mesmo a elevada carga tributária que incide sobre os combustíveis, mas um problema econômico, político e social que se inicia com a decisão do que é prioritário para o crescimento e o bem estar desta nação. O primeiro passo a ser dado é decidir se queremos gasolina barata com um padrão de vida venezuelano, ou gasolina oscilando ao sabor do preço do petróleo no mercado internacional, mas com padrão de vida e de transporte público holandês. Sinceramente, conhecendo um pouco a alma do brasileiro, acho que não serei profético em dizer qual das duas alternativas o brasileiro médio aceitaria com mais naturalidade.

João Lago.

1. ANUT – Associação Nacional dos Usuários do Transporte de Carga, Anais da Audiência Pública na Câmara dos Deputados sobre marco regulatório do transporte rodoviário de caras, 2016;
2. Anuário Estatístico de Transporte 2010-2016, Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil, 2017;
3. Planilha de custos de transporte rodoviário elaborada pelo autor;
4. Brazil – home to the world’s most expensive cars. Automotive Word, 2011.

domingo, 20 de maio de 2018

Os hiperconectados


Inegavelmente vivemos em uma sociedade mais conectada, principalmente com a popularização dos smart phones, como são chamados os celulares multifuncionais com acesso a internet, nos quais a informação virtualmente está nas pontas dos dedos. Contudo, por mais que se faça propaganda para a revolução na qualidade crítica dos hiperconectados, o simples fato da facilidade de acesso aos conteúdos de informação parece não refletir em uma melhoria na capacidade de julgamento do que é verdade ou mentira. Observo que uma grande maioria desses hiperconectados consome a informação como se fosse uma tulipa de chope, molhando os lábios com a espuma e dando-se por satisfeito sem saborear a bebida até o final.

O escândalo da manipulação das eleições estadunidenses pela empresa britânica Cambridge Analytica revelou como é frágil o julgamento do eleitor quando induzido a enfrentar os seus medos e preconceitos. Por meio de convites para realizar um inocente quiz (questionários), a empresa solicitava ao usuário a digitação de sua senha de login no facebook e, sem autorização prévia, armazenava em bancos de dados todo o histórico de navegação do indivíduo naquela rede social. Assim, de posse dessas informações, a Cambridge Analytica segmentava usuários por perfis de comportamento e direcionava notícias falsas bem ao gosto do freguês.

O hiperconectado, por convergência ideológica, muitas vezes não se dá ao trabalho de verificar a idoneidade da fonte e não somente acredita no que está recebendo, bem como imediatamente repassa a outros. Exemplificando, ao segmentar um cidadão como conservador e desejando criar uma aversão a determinado candidato, notícias indicando que o mesmo é favor da liberação da maconha e do aborto são direcionadas, ainda que não fossem verdade. Logo a mídia apelidou esse estratagema de fakes news, ou notícias falsas em bom português. O que pode parecer mais grave é que os hiperconectados estão sendo selecionados e enganados por um algoritmo, ou robô em uma linguagem mais popular. No outro lado não há interação humana, mas um programa de computador, justamente porque a inteligência que está por trás disso tudo aponta para um alvo muito fácil de ser atingido: os nossos medos e preconceitos.

A verdade é que o simples acesso à informação não transforma o indivíduo capaz de interpretar mais assertivamente a realidade, ou ser um crítico pronto a refratar as fakes news. O julgamento dos hiperconectados situados na espuma, impedidos pelo preconceito e pelo medo de aprofundarem-se no conhecimento, funciona como uma esponja que absorve somente aquilo que lhes é perfeitamente confortável. Aos hiperconectados da espuma não lhes interessam saber se é real ou falsa a notícia quando essa vai ao encontro de seu próprio ego. Olham para o que leem, veem e escutam como estivessem à procura de um espelho que mostre as suas próprias convicções.

Vivemos em um mundo em que a informação é uma mercadoria e tal como um produto carrega uma ideologia, um propósito e um público alvo. Porém, a boa informação é aquela que mesmo não sendo completamente isenta trabalha com a verdade dos fatos e tem honestidade intelectual, ou seja, não cria notícias baseadas em mentiras menosprezando a capacidade do receptor em buscar a verdade.

As eleições deste ano será um campo fértil para semear inverdades e o melhor caminho para não se deixar enganar é desconfiar de qualquer notícia que possa ser boa demais para o nosso próprio ego, pois neste caso, quem está pronto a nos deixar enganar somos nós mesmos.

João Lago