Viralizou na internet um áudio
atribuído ao falecido apresentador de TV Marcelo Rezende no qual o mesmo profetizou
a greve dos caminhoneiros. Entretanto, assim como as vozes de Silvio Santos,
Lula e Gil Gomes, imitar o jeito, os cacoetes e o timbre de voz do apresentador
não é um trabalho tão hercúleo. Todavia, como já destacado por este modesto
tocador de bumbo, não se deve acreditar em tudo o que circula nas redes
sociais, sendo melhor em alguns casos rir despretensiosamente e crer que aquilo
está ali para divertir-nos, muito embora muitos levem isso à sério.
Tive a oportunidade de haver
atuado na logística de uma multinacional no sudeste do Brasil, tanto na
composição de custos logísticos, bem como na distribuição física, além de haver
lecionado a disciplina de logística empresarial em alguns centros de ensino
universitário. Assim, posso dizer confortavelmente que sendo profecia ou não, a
mais reles quiromante, mesmo a mãe margarida, aquela que com os seus sortilégios
traz em sete dias o ser amado de volta, poderia ter profetizado uma greve de
caminhoneiros que paralisaria o abastecimento do país em tão pouco tempo.
Porque o Brasil é uma nação que na década de 70 a base logística foi erguida na
tríade: asfalto, pneu e diesel e não seria de estranhar-se que atualmente aproximadamente
66% das mercadorias transportadas no país estejam na carroceria de caminhões (1).
Portanto, ao chegar a sua casa, olhe ao redor e será muito provável que quase a
totalidade dos bens de consumo de sua residência, em algum momento da cadeia
logística, foi transportada por caminhões. Porém, para deixar a situação mais
dramática, outro fator que explica porque o país parou nos últimos dias é que,
da totalidade da frota de caminhões do país, 60,6% estão nas mãos das empresas e
cooperativas, ficando os 39,4% na posse de caminhoneiros autônomos (2). Ou
seja, boa parte da movimentação de cargas está na carroceria de caminhões cujos
profissionais não estão ligados a nenhuma empresa ou entidade de classe, o que
dificulta a identificação de lideranças e explica o porquê de toda a
paralisação fosse coordenada, combinada e difundida por meio de mensagens de
whatsapp.
A Petrobras não tem obrigação de
cuidar de custo operacional de terceiros, mesmo porque a política desastrada de
manutenção dos preços dos combustíveis artificialmente congelados no mercado
interno, durante os governos petistas aliados à corrupção, deixou a petroleira
em estado quase falimentar. Desta forma, a adoção ortodoxa de correção
automática dos preços dos combustíveis, a partir da oscilação do barril de
petróleo no mercado externo, protegeu o caixa da Petrobras, mas bagunçou com a
estrutura de custos do serviço de transporte rodoviário de cargas. Não somente
o transportador autônomo foi afetado e as suspeitas de locaute pelas empresas
de transporte fazem todo o sentido. Locaute é quando os patrões manipulam e
usam o direito de greve dos trabalhadores para atingirem seus fins meramente
econômicos empresariais.
Os caminhoneiros autônomos na sua
maioria trabalham como terceirizados de empresas de logística que muitas vezes
funcionam como agenciadoras de cargas junto a grandes embarcadores, não sendo
comum que um caminhoneiro seja contratado diretamente por uma grande indústria.
Essa “quarteirização” do serviço, e a pressão sobre custos mais baixos na
cadeia logística, acabam por reduzir a margem bruta e o resultado operacional é
quase que insuficiente para cobrir todos os gastos necessários para a
manutenção do veículo, a sobrevivência do caminhoneiro e de sua família.
Considerando que o combustível representa em média 60% dos custos de transporte
(3), qualquer aumento no preço desse insumo em períodos tão curtos, e que não
possa ser compensado/renegociado no ciclo operacional do serviço, pode
representar a inviabilização do transporte autônomo. Para exemplificar, um caminhoneiro “fecha um
frete” em um valor e sai para fazer a entrega, recebendo um adiantamento para
iniciar a viagem e ficando para receber o restante quando apresentar o CTRC –
Conhecimento de Transporte Rodoviário de Cargas - assinado pelo destinatário.
Durante a viagem, o autônomo é surpreendido com o aumento do diesel, que traz
um desequilíbrio econômico financeiro do frete. O caminhoneiro faz a entrega e o
agenciador estipula um prazo para pagamento, muitas vezes somente depois do
embarcador pagar pelo serviço. Nesse lapso temporal, que pode durar mais de 45
dias, suponhamos outro aumento de preço no diesel e o caminhoneiro entra em
desespero, pois o frete combinado que ficou ruim agora não fecha a conta. Sendo
bastante empático ao caminhoneiro, imaginemos que recebamos o salário hoje e
sem aviso prévio os preços dos alimentos sofram dois reajustes seguidos no mês.
No mês seguinte, poderíamos correr para o supermercado e fazer compras para
garantir um estoque face escalada inflacionária, como bem fizemos antes do
Plano Real na época de hiperinflação. Contudo, o caminhoneiro não pode fazer
estoque de diesel, tão pouco reivindicar repactuação do frete junto ao
agenciador. Assim, o prejuízo recairá sobre o elo mais frágil da cadeia
logística.
A política de preço do diesel
para veículos de transporte de carga e passageiros, por questão estratégica de
interesse nacional, não pode acompanhar o sobe e desce frenético do preço do
barril do petróleo do mercado externo, mas não se deve estender esse benefício
ao preço da gasolina, nem tão pouco ao preço do diesel destinado aos luxuosos
pick-ups de passeio. As nações desenvolvidas desestimulam o transporte
individual e privilegiam o transporte público de massa, sendo justamente o
contrário da realidade brasileira. Transportes públicos de péssima qualidade
empurram o cidadão ao desejo de possuir automóvel e o consumidor brasileiro faz
a alegria das montadoras estrangeiras, cujas margens de lucro é três vezes maiores
no Brasil que nos países sede de suas origens (4). Portanto, por mais que seja
desagradável o sobe e desce dos preços da gasolina nos postos, o abastecimento
dos veículos de passeio não deve ser prioritário. Talvez os altos preços da
gasolina possam ser uma medida pedagógica para que o cidadão de classe média efetivamente
possa exigir um transporte público de qualidade e deixe de considerar o ônibus (e
demais meios de transporte de massa) como feito para transportar pobre.
O movimento paredista dos
caminhoneiros que paralisou o Brasil não é um assunto que se resume a política
de preços da Petrobras, ou mesmo a elevada carga tributária que incide sobre os
combustíveis, mas um problema econômico, político e social que se inicia com a
decisão do que é prioritário para o crescimento e o bem estar desta nação. O
primeiro passo a ser dado é decidir se queremos gasolina barata com um padrão
de vida venezuelano, ou gasolina oscilando ao sabor do preço do petróleo no mercado
internacional, mas com padrão de vida e de transporte público holandês.
Sinceramente, conhecendo um pouco a alma do brasileiro, acho que não serei
profético em dizer qual das duas alternativas o brasileiro médio aceitaria com
mais naturalidade.
João Lago.
1. ANUT – Associação Nacional dos Usuários do Transporte de Carga, Anais da Audiência Pública na Câmara dos Deputados sobre marco regulatório do transporte rodoviário de caras, 2016;
2. Anuário Estatístico de Transporte 2010-2016, Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil, 2017;
3. Planilha de custos de transporte rodoviário elaborada pelo autor;
4. Brazil – home to the world’s most expensive cars. Automotive Word, 2011.
2. Anuário Estatístico de Transporte 2010-2016, Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil, 2017;
3. Planilha de custos de transporte rodoviário elaborada pelo autor;
4. Brazil – home to the world’s most expensive cars. Automotive Word, 2011.