Em 1982, em meus quinze anos,
enquanto aguardava na fila para comprar ingressos para o filme ET o
Extraterrestre, no extinto Cine Veneza do centro da cidade de Manaus, podia-se
ver os cartazes de filmes com nomes sugestivos como Amor Estranho Amor, Curral
de Mulheres, Aluga-se Moças dentre outros. Durante boa parte da minha adolescência
a safra do cinema nacional era destinada a um público adulto, ou melhor dizendo,
aos maiores de dezoito anos e era comum o juizado de menores fazer diligências em
cinemas a procura de eventuais transgressores da lei. A censura, assim
organizada durante a ditadura militar, justificava sua extensa estrutura de
repressão política também como mantenedora dos bons costumes da família
brasileira. Não somente o cinema, mas a música, literatura e as artes de modo
geral estavam sujeitas aos censores do governo militar. Por exemplo, a música
Je t’aime (moi non plus), repleta de sussurros eróticos em um idioma
incompreensível para maioria dos brasileiros recebera a época o carimbo de
“impróprio para menores de 18 anos”.
Veio a abertura democrática e
esses novos ventos trouxeram uma aversão a tudo que pudesse lembrar os anos de
repressão política e a elite intelectual brasileira adquire uma ojeriza a qualquer
espécie de controle social que possa significar censura. E no reboque de uma
indesejada anarquia moral escuto uma música que diz: “Ah Safada!Na hora de
ganhar madeirada, a menina meteu o pé pra casa e mandou um recadinho pra mim:
Nós se vê por aí (sic)”. Fica a dúvida se essa canção lúdica, que eventualmente
vemos na boca de crianças, refere-se à apologia ao estupro ou ao sexo grupal.
No entanto, pode-se dizer que se o cancioneiro popular dos anos oitenta abusava
das palavras de duplo sentido com a pretensão de fazer rir, arrisco dizer que
neste novo milênio o desejo inerente desse explícito burlesco é o de instituir
o salaz com ares de cultura pop.
Entre as várias interpretações do
que seja cultura pop, a que mais me agrada é aquela que diz que a mesma é uma
inovação que emerge pelo gosto popular (daí o pop) e busca dialogar com a
cultura erudita. Um ícone que explica a
cultura pop é o pintor e cineasta Andy Warhol, cuja obra invade as galerias de
artes por conquistar o gosto de uma elite jovem intelectualizada. Melhor que
Warhol, na música David Bowie é o que mais apropriadamente ilustra o que vem
ser a cultura pop, justamente porque suas composições tiveram aceitação tanto
pelo jovem suburbano londrino, quanto daquele jovem descolado de South
Kensington (bairro nobre da capital inglesa). Assim, apesar de não ser uma
cultura de massa, a cultura pop atualmente é massificada pelos jovens nas redes
sociais. E por trabalhar uma comunicação instantânea e tão fugaz quanto os
próprios acontecimentos que os inspiram, os “memes” podem, a meu ver, serem
considerados uma expressão de cultura pop e uma forma de arte.
No dia 10 de setembro o banco
Santander cancela a exposição Queermuseu cuja programação deveria seguir até 8
de outubro. O motivo do término antecipado foi a polêmica causada por algumas
obras (criança viada que aborda infância e homossexualidade é uma delas) cuja
proposta era valorizar a diversidade sexual, mas buscou apenas misturar
símbolos cristãos com outras expressões do mundo secular, inclusive as de cunho
sexual. Assim, debaixo do protesto de movimentos sociais, o Santander cancela a
exposição e em sua nota a imprensa declara: “ouvimos as manifestações e
entendemos que algumas obras da exposição Queermuseu desrespeitam símbolos,
crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo. Quando a
arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde o seu propósito
maior, que é elevar a condição humana”. O banco Santander de maneira amarga
percebeu que as ações de marketing de uma instituição financeira que atua de
forma plural (varejão para quem preferir este termo) não poderia atuar como a
grife de confecção Benetton que na década de 90 lançava campanhas que
escandalizavam grupos tradicionais, enquanto agradava ao jovem
intelectualizado, contestador e mais incluído no mundo secular, pois esse seria
o seu público-alvo. O mais interessante nesta polêmica é que foi o MBL
(Movimento Brasil Livre) que se mostra com uma cara jovem, mas com um pé no
conservadorismo, que atuou como protagonista, organizando manifestações tanto
nas mídias sociais, quanto nas ruas de Porto Alegre, cidade na qual estava a
exposição.
Muita se fala de um país dividido
e mais recentemente de um cansaço por tudo aquilo que seja politicamente
correto, haja vista o desejo do jovem intelectualizado e contestador em rever
conceitos e preconceitos antes considerados intocáveis. Logicamente a
ideologia de esquerda e a permissividade dos costumes é que está sendo
contestada, motivada por uma contrarreação ao ativismo exacerbado que deseja
calar tudo que seja contrário ao que desejam incutir na sociedade, inclusive a parcela
da “arte” da exposição Queermuseu do Santander como sendo parte da cultura pop
e absolutamente não o é. Na minha análise, a fração das obras ali expostas
tinha o condão de agradar um nicho que deseja desconstruir os valores morais da
ideologia cristã, justamente porque se coloca como resistência a leniência dos
costumes. O banco Santander foi convencido tardiamente disto e por isso
cancelou a exposição.
A beleza da democracia é
justamente permitir a liberdade de expressão, não somente aquela direcionada
para agredir símbolos, crenças e pessoas, como bem escreveu o Santander, mas a
liberdade de expressão que permite também reagir a essas ofensas sem o receio
do patrulhamento do politicamente correto. A censura moderna não é mais aquela
promovida pelo Estado, mas aquela empresarial e direcionada ao que seja conveniente
para a imagem corporativa e aos negócios, evidentemente a depender de quem seja
o seu público alvo.
João Lago