Nos anos 30 do Século XX, o
compositor alemão Carl Orff misturou o latim de versos eróticos medievais com
os acordes e cânticos de música erudita, cujo idioma até então era exclusivo
para as composições de música sacra. Logicamente essa mistura, aliada ao
talento musical do autor, produziu uma das mais conhecidas peças clássicas do
século passado, popularizada entre os jovens dos anos 90 por Michael Jackson
que a utilizou durante a abertura de shows de sua turnê mundial intitulada
Dangerous. Trata-se de Carmina Burana que um desavisado seria capaz de
confundir a composição profana de Carl Orff com uma música de repertório
cristão, tipicamente para ser tocada em igrejas. Acho importante definir o
conceito “profano” aqui atribuído como simplesmente a utilização de simbolismos
sacros para produção de obras de caráter secular (saeculāris), que na
interpretação do latim eclesiástico significaria aquilo que é do mundo, ou dos
homens.
Nesses ecos de festas juninas que
ainda ressoam em Julho, estive prestigiando um arraial em uma comunidade na
zona rural de um município vizinho de Manaus, no qual grupos de dança se
apresentavam. Um deles, formados por crianças e adolescentes, estava
caracterizado com uma indumentária que lembrava as veste de Michael Jackson
(inclusive com o microfone labial tipo headset)
e dançavam ao ritmo pop com letras repletas de mensagens religiosas. Estava ao
meu lado uma amiga, que é psicóloga e atua na região, a quem sussurrei ao pé de
ouvido: Se não estivessem dançando essas músicas, provavelmente estariam
dançando um funk. O líder do grupo de
dança ao final convidava que pais interessados que inscrevessem seus filhos nos
ensaios e enfatizava o cunho cristão como proposta ideológica.
Quando adolescente estudei em
colégio salesiano e sempre tive os portões abertos da escola para prática
esportiva, artes e em particular o teatro. Em uma dessas oportunidades, durante
a montagem da peça Otelo de Shakespeare, pela pesquisa musical necessária para
compor a trilha sonora, tive contato profundo com a música clássica erudita,
inclusive Carl Orff. Era um tempo que os mundos estavam bem divididos e não se
misturavam o sagrado e o profano. Era um tempo que o catolicismo era a religião
majoritária e não se discutia a evasão de católicos para correntes neopentencostais.
Eram ainda tempos de ditadura militar. Hoje tudo mudou, e vemos grupos cristãos
(incluindo católicos) surgirem com movimentos jovens que propõem “carnaval de
cristo”, “hip-hop do senhor”, “rock evangélico” etc. O jovem passou a ser
disputado por essas doutrinas cristãs emergentes e se antes todos os ritmos do
mundo secular que os atraiam eram profanos, agora podem ser adaptados para uma
temática “santa”.
Minha análise antropológica rasa
desse fenômeno é que o jovem é atraído para viver experiências que os coloquem
em contato com o mundo, como um ser que se evade da forma protetora de
crisálida com uma avidez voraz pelo conhecimento (qualquer que seja). Porém, os
valores que são construídos no seio familiar serão aqueles que inicialmente
servirão de julgamento sobre aquilo que lhe convém ou aquilo que lhe seja
moralmente proibido. A depender do quanto esses valores estejam internalizados
no indivíduo, os conflitos íntimos de personalidade podem frear condutas
sociais e eventualmente ser motivo de sofrimento silencioso que podem produzir
um adulto frustrado, recalcado, revoltado e infeliz. Esse efeito colateral é atribuído
por minorias da sociedade aos valores cristãos e que hoje tanto alimenta o
discurso para promoção de um mundo mais secularizado. Ao mesmo tempo, os
movimentos cristãos reagem e buscam introduzir na cultura secular mensagens de
ideologia religiosa.
Desde que a família, por sua
degradação, deixa de ser um ambiente primordial de formação de valores, os
meios de comunicação (a televisão principalmente) e a escola se transformam em
um canal de disseminação de ideologias que tem como alvo os jovens. Alguns pais
podem ter a possibilidade de colocar seus filhos em uma escola confessional ou
instalar em sua casa um canal pago de TV com conteúdo restrito, porém é
justamente na maioria servida pela TV aberta e cliente do ensino público que
vem a reação contra a doutrinação política e da ideologia de gênero. O expoente
da vez dessa reação é movimento Escola Sem Partido, idealizado pelo advogado
Miguel Nagib que inspirou o Projeto de Lei nº 867/2015, de autoria do deputado
Izalci (PSDB/DF) que prega que os professores devem se comportar em sala de
aula com uma “neutralidade ideológica”. Aqueles que apoiam o projeto defendem
que a formação moral da criança não deve ser protagonizada pelo professor, mas restrita
ao âmbito familiar, enquanto aqueles que são contra defendem a importância do
ambiente escolar para ensinar valores como diversidade, igualdade e inclusão, principalmente
da livre sexualidade. É justamente nesse ponto da sexualidade que reside o
combate feroz entre conservadores e os ideólogos de esquerda.
Observo uma crescente polarização
que não admite mais nenhum discurso morno, ou se está muito quente ou
extremamente frio. O mundo secular sempre existiu e por muito tempo o acesso
pleno a ele somente era permitido àqueles que entravam na idade adulta. Lembro-me
de um disco de vinil de composições francesas que vi certa vez em um sebo que
trazia uma tarja de “proibido para menores de dezoito anos” porque trazia a
música Je t’aime, moi non plus (1976)
na qual homem e mulher sussurram e gemem enquanto cantam. Hoje, qualquer “funkezinho”
dos mais inocentes é muito mais moralmente perturbador que essa composição de Serge
Gainsbourg. Eram tempos em que se acreditava que se devia preservar a inocência
das crianças e essa censura imposta durante a ditadura militar produziu uma
intelectualidade que em nome da liberdade de expressão tornou-se refratária a
qualquer espécie de controle de acesso a conteúdo.
Não pretendo nesta minha reflexão
apresentar uma solução de conciliação entre o sagrado e o profano, mas observo que
os movimentos que misturam cultura secular com mensagens religiosas estão
perdendo o foco, ou cedendo em suas convicções ideológicas justamente para uma
minoria articulada e influente na sociedade. Não acredito que a solução seja o “funk
de jeová”, ou qualquer outra coisa que possa soar como heresia para atrair
jovens, mas simplesmente ensiná-los a reconhecer e a julgar o que pode ser
melhor para si, respeitando o seu corpo, sua integridade moral, respeito às
leis, respeito ao próximo, ou seja, simplesmente ensinado valores. Esta é a
melhor proteção que podemos deixar para os nossos filhos.
João Lago.